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  • Foto do escritorBatista de Lima

Paisagem despedaçada

Batista de Lima


Aquele que daqui se foi levou consigo a paisagem. Gerôncio ao ser crucificado pôs na cruz um pasto verde. Seu pai, ido bem antes, ensacou dez rapaduras que dos alforges sobraram. Uma vaca boa de leite levou consigo a mama, um belo bezerro preto, e um coice bem desferido na minha canela esquerda. Um vento forte nascido, lá das bandas do olho d´agua, levou consigo o domingo, duas camisas de assistir missa, um rosário e um bendito, a São Francisco de Assis. Levou também um quibano e o retrato de uma santa chamada de Margarida Maria.

Certo dia de sol quente, algumas nuvens chegaram, com cara de quem vai chover, mas eram apenas desculpas para espetar esperanças nos olhos das goiabeiras. No dia seguinte chegaram três homens montando léguas, presentearam sorrisos de mãos dadas com promessas, levaram os votos da gente em urnas quadrienais. Depois veio uma tosse braba, dessas de cuspir pulmões, levou dona Luíza Anacleto e sua arte de curar quebranto, com flores de muçambê.

Entre agosto e setembro, veio um homem bem montado, desses de chapéu de couro, levou o touro zebu, as promessas de coalhadas, o futuro dos bezerros no desespero das vacas. Chegou um carro quase blindado, trazendo um branco fogão a gás, e levou para o p´ra sempre o fogão feito de trempe. Na quarta-feira de cinzas, minha avó se foi deitada, levando consigo as panelas, ainda feitas de barro, os olhos do meu avô, o cafuné dos meninos e uma lata quase cheia de pamonha e pão-de-ló. Levou também a roseira que todo dia floria no jarro do pé da porta.

No fim do ano passado, os urubus de bico preto levaram aquele burro de sela que os motoqueiros esqueceram. Os anos que também se foram, levaram renovações, os terços de penitentes, levaram o engenho antigo, de rapadura repleto, pois o mundo foi invadido pelo doce de açúcar cristal. Já o açude do pé da serra, numa sangria de abril, mandou os peixes embora, por falta de pescarias. Certo dia uma moça forte, dessas que usam bigode, trazendo amiguinha triste, na garupa duma moto, soltou galinhas e patos e instalou no casarão o mundo dos congelados. Desse tempo em diante perdemos o canto do galo.

Uma maquininha piscante, nascida não sei aonde, se instalou numa mesinha, debaixo do São José, e trouxe um mundo de cores para a casa de tijolos. Trouxe cores de lonjuras, esperanças já cifradas, ofertas de cova aberta para gente ainda viva. Trouxe também um pastor, desses de olhar de santo, dizendo o preço a prazo do ingresso no céu dos anjos. Depois chegou um bombeiro, desses que encanam água, mandou quebrar os potes, aposentar lata d´água, e fez a parede chorar, em torneiras de alumínio, muita água comportada. Cacos de potes jogados no desprezo do monturo, latas de flandre esquecidas, nos cantos do que não serve, a casa ficou olhando para um tempo que se ia e ao mesmo tempo sismando com tudo que ali chegava.

Quando o poste abriu seus olhos, com pupilas florescentes, as estrelas se esconderam, de nudez envergonhadas, e a lua estristecida não quis mais virar luar. Até velhas lamparinas, embriagadas de gás e encandeadas do sol que aqueles fios trouxeram, se esconderam no sótão com pavios sem função. O velho rádio falante, que comia bateria, tirando o gosto com pilha, encabulou-se e calou-se quando o rival televisor sentou praça na família e jogou dentro de casa as conversas do alpendre.

Aquele que se vai daqui, quando retorna não chega, pois vem montado em outro que o lá fora refez. Traz uns olhos que não veem a flor do maracujá, as pestanas do alpendre piscando por boas vindas. O cachorro velho e sarnento vem lhe fazer um carinho e o cabra pula de lado com medo de ficar doente. O açude velho sangrando, oferta banho e nado, mas o retornado prefere no chuveiro do banheiro se molhar sem mergulhar. Não sabe esse pobre coitado que no açude da frente os contornos do seu corpo ali cravados ficaram.

Aquele que daqui se foi não levou os dentes de leite nem o cordão umbilical enterrado no pé da cerca. Entretanto ao daqui partir, levou a queima da caieira, a espingarda socadeira, escondida atrás da porta. Levou aquele andar sem jeito, parecido urubu cangueiro, o olhar desconfiado de quem não sabe onde pisa e o jeito todo sestroso de agradar moça menina. Mas é preciso cuidado com aquele que daqui se foi pois a faca de picar fumo tem outras utilidades. É preciso ter cuidado com a palavra empenhada pois quando daqui se parte já se pensa em retorno, e no caminho da ida a volta já se prepara.

É pena que certa vez em plena segunda-feira do primeiro mês do ano, estorricado de seco, um fogo se alastrou nas quebradas da serra grande. Tudo que era bicho de pena, de couro e de escama, o fogo queimou sem dó, depois se apagou sozinho, já de fome saciado. Essa paisagem ferida, essa terra destruída pedem socorro e dormitam por falta de vitamina. Essa terra tão transida, em deserto transformada, de riachos constipados como artérias entupidas de um coração enfartado, viram dor no nosso peito, e grita e geme em desespero pelos cantos da memória numa cantiga sem jeito. Essas coisas de cantar lembranças, paisagens que se destroem, é um jeito desajeitado de recompor o cenário que a gente deixou por lá.


jbatista@unifor.br

03/05/11.

 

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