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Os possantes velhos de guerra

Batista de Lima



Raimundinho do misto fez a linha Limoeiro-Mossoró desde 1961. Sustentou a família e o carro, formou os sete filhos e virou história. Seu misto, caminhão adaptado para transporte de pessoas e mercadorias, faz parte da família. O veículo é também um limoeirense ilustre, como o próprio Raimundinho, como D. Aureliano Matos, Otacílio Batista, Meton Maia e Silva, Luciano Maia, as bicicletas, as carnaubeiras e o rio Jaguaribe. O misto de Raimundinho ia cair no esquecimento se não fosse o olhar prescrutador de Carlos Normando. Carlos Normando é documentarista e professor do curso de Publicidade e Propaganda, da Universidade de Fortaleza. Formado em ´cinema direto´ no Ateliers Varan de Paris-França é autor dos documentários ´Ele, Ely´ e ´Lolô S.A´. Agora aparece com esse novo documentário de 20 minutos sob o título ´Possante velho de guerra´. É um documentário com ´ferrugem, paixão e muitos quilômetros rodados´. Toda a equipe de produção, entrevistas, câmera e edição se resumem a um só responsável: Carlos Normando. Portando apenas sua câmera, o documentarista leva na cabeça a idéia de levantar a saga desses motoristas de velhos veículos bastante rodados e que transitam sobre causos acumulados em décadas. Além de Raimundinho do Misto, de Limoeiro; aparece o seu Expedito do Chevrolet Alvorada 1963, que faz a linha Baturité-Fortaleza. Outro é o ´Pipoca´, com sua camionete Rural 1972, que circula entre Maranguape e seus distritos, transportando passageiros, mercadorias e alvíssaras, verdadeira novidadeira da população. Para completar o elenco de personagens, aparece Wilton ´Palito da Fronteira´ com seu Jeep Willys 1942, de Fortaleza. Esse antigo veículo, em bom estado de conservação, serve para uma aula dada pelo seu proprietário sobre as diversas utilidades do carro construído para desempenhar seu papel na cavalaria do Exército Americano durante a IIª Grande Guerra. Os quatro veículos têm pouco valor comercial. São sucatas que se movem. No entanto, cada um tem um grande valor afetivo e histórico. São verdadeiros depositários de memórias de um tempo que teima em desaparecer. Carlos Normando imprime uma intimidade entre os personagens do seu documentário e o expectador que nos instiga a embarcar nesses veículos para fazer o percurso nostálgico entre Limoeiro e Mossoró, Baturité e Fortaleza. A gente pega carona na história e de repente está metido numa aventura com as mãos sujas de graxa, num percurso que tem hora certa de saída mas que a chegada é uma vitória da teimosia contra a tecnologia. Seu filme, fenomenologicamente, nos põe no misto de João Dionísio, gemendo na subida da Serra do Caririaçu, indo de Lavras para Juazeiro. Lembra o velho Ford de Felinto, um caminhão velho dos anos 1940 que na década de sessenta ainda transportava carradas de algodão no Centro Sul. Aquele velho Ford ao subir as ladeiras era tão vagaroso e frágil que o ajudante, Dé de Joanila, ia caminhando atrás com o cepo no ombro, já preparado para calçar o caminhão nas suas descidas de ré, pós-estancamentos. São velhos tempos de estradas sem pavimentação, sem sinalização em que esses transportes não possuíam lugares certos para as suas paradas. Bastava alguém acenar na beira da estrada carroçável e poeirenta para que houvesse uma parada. Às vezes havia um saco esquecido na beira da rodagem e o carro parava buzinando no seu chamamento por um possível passageiro. Tempos aqueles em que a poeira misturada com o odor da gasolina impregnavam as vestimentas dos passageiros que chegavam ao destino batizados nas suas roupas com o vermelho da distância. Calculava-se a distância do local de onde vinha o transporte pela sujeira das roupas dos passageiros. Imagine-se como chegavam a São Paulo, retirantes nordestinos, paus-de-arara, que daqui saíam em caminhões cobertos de lona e adaptados com bancos de madeiras na corroceria, para transporte por dias e dias de flagelados em busca de emprego. Toda essa saga ainda não foi bem trabalhada pelo cinema, não sensibilizou tão bem os intelectuais que poderiam ter como músicas de fundo, toda a discografia de Jackson no Pandeiro, ou a Triste Partida, de Patativa do Assaré. Elogiável pois a atitude do jovem urbano Carlos Normando, mostrando principalmente o velho misto do Raimundinho com seus vários causos de viagens, como a mulher que teve o menino no interior de seu veículo, ou a viagem que fez à noite, de ré, no seu caminhão, por defeito mecânico. Poderia Normando ter mostrado ainda as relações sociais dos viajantes do misto. Pois as mulheres iam nas três fileiras de bancos da cabine. Na carroceria, na parte da frente iam os passageiros masculinos. No meio da carroceria iam as mercadorias e na parte mais traseira da mesma iam até animais para a feira, como porcos, ovelhas e galinhas. Essa convivência nesse tipo de transporte que marcou época em nossos sertões é uma das características do romantismo que Carlos Normando nos desperta ao resgatar a sobrevivência teimosa e histórica desses transportes que ainda teimam em sobreviver.

 

15/04/2008.

 

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