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Os moinhos de Fátima Lemos

Batista de Lima




O título do seu livro é "Moinhos do tempo", o que de início estabelece já uma metáfora. Esse é também o título do primeiro poema dessa coletânea poética, que vem falando de sonhos, da fragilidade humana e do olhar, essa janela da alma. Infere-se por esse primeiro texto que não é tão necessário abrir os olhos para ver o mundo poeticamente. Melhor é abrir outras janelas por onde transborda o que se carrega, e no caso de Fátima Lemos, saudade. Essa saudade vem sedenta do amor que se foi, testemunhado pelo luar do sertão, cúmplice do idílio dos amantes.

Essa saudade só consegue ser mitigada através da azáfama dos dias úteis, em que o labor da executiva tenta escamotear os arroubos do coração. Basta o recolhimento na vacância entre os turnos, para o coração de novo transbordar torrencial no lençol que ficou único. O trabalho como fuga, o poema como gotejador do que crucia, esse é o cotidiano da escritora. Há, portanto, resquícios de um luto perdurado e índices de uma melancolia remota que remonta de uma ancestralidade em que as coisas são assim porque assim foram predestinadas.

Diante desse panorama inicial do fazer poético de Fátima Lemos, dá para concluir que seu trampolim inspirador para transfigurar-se poeticamente está incrustado no desassossego que a saudade do amado lhe provoca. A partida dele para o outro lado do mistério instalou na sua subjetividade um moinho que tritura ao contrário, refazendo, via escritura, o que o destino ousou interromper. A palavra está, pois, com seu papel ressuscitador e milagreiro. Seu texto transvê o que se instalou na sua estrutura profunda e transborda em borbulhas de acalanto.

São as palavras que lhe servem de ponte entre o apolíneo da executiva e o dionisíaco dos sonhos amordaçados. Essa oscilação entre o ser e o não ser faz com que sua poesia seja uma metáfora, que traz à tona, em forma de sintoma, o real metonímico escondido, feito mina de preciosidades acorrentadas.

Se esse aluvião retido um dia vier à superfície, temperado com pitadas de burilamento da linguagem, nós estaremos diante de uma imensa manifestação poética. E não será a primeira mulher a abrir suas comportas. Cecília Meireles, Florbela Espanca e Hilda Hilst fizeram isso muito bem e hoje estão aí nos patamares superiores da literatura.

Fazer poesia é desnudar-se de incomodações. O lirismo é a respiração do eu. Daí que, se as borboletas pararem de bailar no nosso estômago e os moinhos aparecerem triturando o que nos resta, há como transformar tudo isso em canto, pela voz inconfundível da poesia. É bem verdade que a poesia de Fátima Lemos canta uma profunda saudade, mas é preciso que as palavras saiam de seus pedestais tradicionais e se vistam de novos figurinos antes de entrar em cena. É preciso que as palavras mal se comportem, atrevam-se a ser atrevidas, sujem os tapetes das convenções, pigarreiem no momento das homilias e revirem afrontosamente essa construção verbal.

Essa imensa saudade de Fátima Lemos vem montada em imagens que se embalseiram tão volumosas em seu coração, que seus olhos são riachos estreitos para tanta correnteza. A pergunta é: será que sua poesia é suficiente para desbastar esse caudal de dores? Só é possível saber com o tempo e com outras produções literárias que na certa virão. De qualquer forma, uma porteira se abriu e uma manada de revelações já se libertaram dos currais da memória amorosa. Lacriamorosamente algumas peças do vestuário do seu coração foram retiradas, mas a nudez poética ainda se camufla por trás de insondáveis mistérios.

Enquanto isso, ela não sabe o que virá, entretanto ao ver crianças brincando, ela passa a crer no amanhã, mesmo que no seu momento de elaboração poética, tudo pareça incompleto. Mas o que seria da poesia se não fossem nossas incompletudes? Poesia tem preferência pela falta, até pela falta que a falta faz. Por isso que a solidão e a saudade afloram mais fortemente na volta para casa, principalmente quando cai a noite e a lua vem fazer serenata para as estrelas do céu. Tudo isso porque na casa ainda borbulham afetos nos contornos dos compartimentos. Na mesa solidária e nua, uma cadeira está vazia acionando as cordas do coração da chegante numa melodia pungente. Será que as palavras serão suficientes para transladar para o poema o que o cenário reverbera?

Os melhores momentos da poesia de Fátima Lemos ocorrem quando os conflitos pessoais mais afloram. Há um corpo que reclama e uma alma que clama por prudência e recato. São porteiras que se querem cancelas, são cancelas que não lhe dão garantias de estouvamentos.

Este registro sobre o livro de Fátima Lemos é uma visão deste escriba, que com ela mantém uma relação familiar, e não significa uma leitura definitiva, já que cada leitor vai ter sua própria interpretação do que transcende dos textos.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 11/10/2016.


 

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