top of page
  • Foto do escritorBatista de Lima

Os desejos de Macambira

Batista de Lima




Macambira tinha tantos bens quantos teréns. Eram vacas sonolentas nos terreiros e um armazém com desutensílios ao mofo. Meninos, contou até aos doze, depois perdeu a conta. Entre seus possuídos íntimos, carregava desejos de difícil realização. Queria viajar de avião, navegar em navios de grande porte e longo curso, e comer maçã com queijo todas as manhãs. Acontece que a reca de meninos e as muitas secas sem aviso não lhe permitiam maiores voos que ir à feira aos domingos e nadar no açude grande em demorados banhos.

Macambira era bom pescador. Seu pai lhe dera tarrafa e faro de peixe. Também tinha dias de caça lá para as bandas do pé da serra onde Maria Raimunda morava só. Diziam coisas dos dois. Ele negava tudo. O que não negava era o fato de ter sonhos. Eram sonhos sangrando por cima da serra e se perdendo no sem solução. Bastava ligar o rádio "Semp", a pilha, e ouvir os noticiários. Era um viajar pelas geografias ouvidas. Também gostava das cantorias, das pelejas dos violeiros, das rimas improvisadas, chegando às vezes a produzir algumas trovas de pé quebrado.

O velho Macamba, como era chamado por alguns amigos, formou quase todos os filhos. Tinha, depois de velho, mais de dez doutores formados de anel no dedo. Dois foram ser jogadores de futebol, tinha uma freira, um padre, e o restante, raia miúda e ponta de rama, ficou ali nos calcanhares do velho, que rabujava a cada ano envelhecido. Mesmo assim, todos queriam lhe agradar, mas era difícil. A velhice era seu desassossego. Foi então que lhe ofereceram viagem ao exterior e ele aceitou. Ia viajar de avião pela primeira vez e conhecer a Europa.

A viagem acertada, foi imposta uma condição, tinha que levar Dona Raimundinha, sua mulher, já um caquinho de gente. Também exigiu que sua rede azul e o lençol cheiroso fossem embarcados. Sim, que não esquecessem uma porção de goma para feitura de suas tapiocas matutinas, feitas pela mãe de seus filhos de casa. Tinha que chegar apetrechado à Cidade Luz, onde a filha doutoranda esperava ansiosa. Acontece que logo no aeroporto seu Macambira foi detido com mercadoria suspeita. Houve um quiproquó até seus filhos da justiça comprovarem que o pai transportava goma para tapioca. Isso sem contar que ao chegar à capital francesa não encontrou armador no apartamento da filha para armar sua rede cor do mar. Foi preciso que sua querida Rosamélia, caçula da prole toda, fosse adquirir suportes de ferro para improvisar armador de rede. Isso ele já enraivecido com a má educação dos franceses que não respondiam bom dia, boa tarde e boa noite.

Depois de quinze dias de turismo o casal voltou. Mal pisou seus mandos, o velho patriarca sentiu uma trincadura pelas bandas do espinhaço. Exames de cá, exames de lá, descobriram tumor maligno no cansaço de suas carnes. Era questão de poucos meses de agulhagens sem solução. Foi preciso que a filha psicóloga hospitalar lhe relatasse a desdita. Mas o velho nem se abateu. Aliás, conclamou os filhos e relatou seus últimos desejos. Não dispensava a realização. Um era viajar a Caruaru. Queria conhecer a feira e tomar umas bicadas de "Madeira de Lei", tirando o gosto com bundas de tanajuras torradas na manteiga da terra.

Realizado esse primeiro desejo, o segundo veio acompanhado de um certo constrangimento para os familiares, principalmente para Dona Raimundinha. O velho moribundo exigiu uma coleção de filmes eróticos para exibir no televisor de seu quarto. Depois de muitas negociações, tudo foi arranjado com a condição de um controle remoto nas suas mãos, que desligasse o televisor à entrada das visitas. Foi uma luta para Dona Raimundinha aceitar tão grande disparate. Problema era que muitas vezes ele adormecia e quando entrava alguém encontrava as cenas eróticas em plena evolução.

Faltando um mês para o desfecho fúnebre, com seu Macambira já precisando de enfermeira permanente, ele fincou pé e dispensou três que vinham se revezando. Queria realizar seu último sonho. Queria que a garota Osmarina, ajudante da cozinheira, viesse lhe fazer companhia nos seus últimos dias de vida. Menina lustrosa, com seus dezoito anos de carnes firmes, rigidez muscular e protuberâncias salientes seria ideal para lhe dar os banhos diários.

Para seu atendimento foi necessária muita negociação com Dona Raimundinha e convencimento para a moça, mas o gosto do moribundo foi realizado à risca. No dia do desfecho final, seu Macambira foi encontrado inerte nos braços de Osmarina, sem roupa, e com um sorriso malandro suspenso na palidez da última felicidade. Quanto à moça cuidadora, nove meses depois estava na maternidade, dando mais um irmão para os filhos do velho sonhador.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 05/09/2017.


 

2 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page