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Os cuidados de Macário

Batista de Lima

Sexta-feira, dezoito horas. Dirijo-me à residência de Macário, que não vejo há mais de ano, mesmo sendo meu vizinho. Mas agora preciso vê-lo para tirar dúvidas sobre novas regras do Imposto de Renda. Sou sabedor de que meu vizinho é contabilista e prepara declarações no escritório em que trabalha. Por isso ouso tocar a sirene de sua casa de muro altíssimo, cerca elétrica e câmeras instaladas. Toco três vezes para que uma voz tímida e sussurrante me atenda. Reconheci aquela velha gagueira das conversas de quando conversávamos enquanto fazíamos caminhadas na rua.

Velhos tempos que não voltam mais. Éramos meia dúzia que andávamos uma hora ao nascer do sol.

Depois de perguntar quem era, respondi ser seu vizinho do lado direito. Dei meu nome, relembrei nossas andanças e respondi mais uma série de perguntas. Inclusive, afirmei que não havia ninguém na rua, além de mim, não havia carro estacionado por perto e que era apenas uma consulta que lhe queria fazer e que poderia ser respondida pelo interfone.

Macário demorou a abrir o portão, pois teve que retirar cadeados e abrir a fechadura com enorme chave. Ao vê-lo, quis abraçá-lo, mas dois grandes cachorros, cheios de dentes, estavam sendo seguros com dificuldades pelo meu amigo. Mesmo assim o portão foi trancafiado como se cofre fosse. Adentramos a casa depois que os cães foram amarrados a uma coluna. Antes de entrar na sala, observei as grades de ferro que antecipavam a porta de madeira fornida. Na sala havia barulho de música e uma mesa com salgadinhos, refrigerantes e cerveja. Os três filhos pequenos, a mulher e mais a diarista exultavam de alegria.

Com tanta felicidade no recinto, calculei que alguém estivesse aniversariando, mas não havia vela. Perguntei então qual o motivo de tão efusiva comemoração. Meu amigo Macário me conduziu ao seu gabinete e me contou que era a culminância da semana que terminava. É que fora uma semana em que as seis pessoas ali presentes festejavam o sucesso de passarem sete dias sem sofrer assalto, trote por telefone nem batida de trânsito. Era costume familiar festejar o sucesso de sobreviver a tudo isso.

Macário estava alegre e me contou que, ao sair para o trabalho, é a mulher que o transporta no carro único da família. É um carro que mandou blindar com muito reforço. Contou que pela manhã, numa só viagem, as três crianças são deixadas na escola de tempo integral em que permanecem até as dezessete horas. Continuando a viagem, a mulher o deixa no escritório. Na despedida os dois se abraçam e rezam uma jaculatória para que São Cristovão proteja a esposa que volta sozinha para casa. Se os cinco familiares conseguirem chegar incólumes em casa na volta, há sempre o festejo do reencontro.

Enquanto conversávamos, verifiquei que havia no canto do compartimento um enorme boneco inflado, medindo em torno de um metro e setenta. Tinha bigode mexicano e usava chapéu panamá. Aparentava lutador de MMA e trazia tatuagens de marinheiro no muque de cada braço. Tão bem esculpido que eu quase dava boa noite àquele cidadão de plástico. Foi aí que Macário me explicou que ao ir ao trabalho, quando a mulher volta no blindado, sozinha, coloca o bonecão no banco do passageiro que é para assaltantes e flanelinhas pensarem que é um lutador que lhe vai ao lado.

Com todo esse aparato de precaução, meu vizinho, em poucas palavras, respondeu minha consulta. Passou todo o resto do tempo contando histórias de violências sofridas pelos familiares de casa e os de fora. Contou tragédias a que assistiu pela televisão, falou na ineficácia dos mecanismos de repressão ao tráfico, mostrou recortes de jornais que mostravam criminosos e vítimas, e, finalmente os rituais que utiliza quando precisa sair sozinho de casa. Macário sempre se despede na saída como quem parte para não mais voltar e festeja efusivamente quando retorna. Já tem túmulo comprado e caixão encomendado para si e para os seus. Já fez testamento e sempre está com os sacramentos em dia.

Antes de me despedir, meu vizinho ainda me mostrou um pequeno oratório com seis estátuas de santos e uma vela fincada ao pé de cada uma. Explicou que ao sair algum dos de casa, a vela correspondente é acesa e só se apaga com o retorno do que saiu. Aconselhou-me a fazer o mesmo, alegando que a proteção divina também é necessária. Depois iniciou todo um trabalho de organização de minha saída. A cada porta que ultrapassávamos, ele a fechava atrás. Depois retirou os cachorros da coluna e só assim iniciou a difícil abertura do portão. Abraçamo-nos em despedida regada a lágrimas, com a certeza de que aquela era a última vez que nos víamos. E a noite cinza e incerta me engolia nos cinco passos a separar-me de meu portão de uma chave só.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 08/05/2018.


 

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