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Os abismos que nos falam

Batista de Lima


Palavras são panos poucos para cobrir os abismos que transportamos. Nossa salvação é que o outro, também de abismos repleto, é nossa imagem e semelhança. As palavras que nos faltam, em vez de nos afastarem, nos aproximam através do não dito que muito mais dito se torna. O silêncio em vez de ser falta do que dizer pode ser muito mais excesso do que nos é comum. Não preciso gritar exatamente o que sinto, o que é impossível, pois o que sinto já é conhecido e até sentido pelo outro. É isso que nos torna próximos, comuns, unidos e grupais. O que mais me revela é o que menos revelo, afinal, estes abismos silenciosos que transporto são todos gritantes.

Existe, no entanto, a palavra como um trem de transporte do que se sente. E como em um comboio ela se une a outras e formam frases que não saem do trilho. A palavra limita a via do que se sente. Ela é criada para transporte do dizer, mas ao mesmo tempo determina os limites do poder da fala, porque o outro também precisa ter o mesmo percurso para que haja o entendimento. O código é pois um conjunto de reações. E o mestre que ensina esse código arbitrário se transforma em um ditador, por ditar as regras da fala de cada um. Ele em vez de diminuir a distância entre o abismo e a palavra, dilata o percurso.

A arte consegue descarrilhar a palavra e enveredá-la por atalhos que a frase não suporta. Isso acontecendo, um verbo pode ser uma talha; um grito, uma boca escancarada. Um navio que se afasta de um porto é alguém dizendo que está de partida. Uma bicicleta correndo sozinha à noite numa rua deserta é alguém que não sabe onde vai chegar. Um apito pode ser um chamado de chegada, ou partida. Um sino fala para muita gente coisas da memória. A poesia não é só sentimento, é muito mais linguagem. É rebeldia, esfoladura da frase tradicional, subversão do código. A poesia é libertação da palavra, da clausura da frase.

Os abismos nos falam. Neles se incrustem as rebeldias, os afetos, as ternuras. A poesia se abastece muitas vezes nas fontes abissais. Os abismos nos falam porque é neles onde a individualidade germina. Nos abismos a fala se enraíza. Essa fala que emerge à superfície do sujeito, cria uma tensão na relação com o outro. Isso acontece porque cada fala é individual, mudando, portanto, de pessoa para pessoa. Mesmo assim essa fala pode resultar de um planejamento primeiro o que retira sua autenticidade. Nesse caso a autenticidade não se planeja. Ela é produto de uma deriva em que o indivíduo ao se soltar de suas amarras impostas pelo sistema, revela-se, abrindo as portas de seus abismos.

O senso comum verbera que o aprendizado da língua é um processo de libertação. Acontece que a língua é uma criação social. Sua aquisição é uma submissão às suas regras, às significações que a sociedade convencionou. Daí seu aspecto arbitrário transparecer. Se alguma liberdade dela emerge, é uma liberdade medrosa. Mesmo assim esse fenômeno fica a cargo da arte. São abismos que se revelam. Por isso que o lirismo é encantador. Através dele a estrutura profunda vem tomar sol na estrutura de superfície. As emoções afloram, o duplo dá sinais de revelação. O lirismo é a adolescência da alma, a primavera dos abismos.

O adubo dessa primavera é o desejo. Esse desejo é que move o mundo. Por isso podemos dizer que o homem é um desejo que a inteligência tempera. Sem desejo não há vida. É por isso que o discurso pedagógico se torna ainda mais autoritário. Ele transforma o saber em um alimento mas esquece de provocar a fome. Sem fome esse saber não tem sabor. A fome de saber é um desejo que se instaura. O movimento de aprendizagem precisa se tornar mais uma evolução de dentro para fora. Nossos abismos retêm nossos mais fortes desejos. Primeiro é preciso escavar na estrutura profunda os recursos que a pele exige para seu burilamente.

Pele e abismo representam duas dimensões humanas. A pele é um porto de partida com todos os seus contornos definidos. O abismo é tão desconhecido que seus contornos se constroem no percurso. A metáfora que melhor o representa é a do dilúvio. A arca teve um ponto de partida bem definido. Seu destino, no entanto, foi sendo construído no percurso. Os ocupantes da arca não sabiam onde iam chegar. Tinham à frente uma imensidão desconhecida. O único trunfo a favor, é que já estavam dentro dessa imensidão, dela fazendo parte. A arca à deriva era um significante numa busca de seu significado.

Outra imagem também reveladora, que se relaciona aos abismos, é a da porta. A porta é um limite entre o fora e o dentro. Isso se imaginarmos a casa como um ser portador de vida. E isso acontece quando ela é habitada. É aí que se pode analisá-la como se analisasse uma pessoa. Daí a topoanálise, que seria a análise da pessoa como uma construção com camadas, porão, sótão e lareira. Mas com tudo isso a porta é imprescindível para separar a claridade, da sombra; a objetividade, da subjetividade. O nosso engano, no entanto é imaginarmos essa porta apenas como possibilidade de entrar.

A porta é feita também para sair. Se está posta para saídas, é porque algo está dentro para emergir. Esse dentro, onde nos alojamos, são abismos. É o desconhecido que pode tornar-se conhecido. Por isso que portas e janelas são reveladoras da intimidade da casa. Da mesma forma nossos olhos têm essa função de janela da alma, portal dos sonhos. São os olhos que muito mais nos revelam do que palavras que projetamos racionalmente para não dizer exatamente o que se precisa dizer. Por isso que nossas superfícies podem nos calar, mas nossos abismos é que mais nos falam.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 19/06/12.


 

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