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Onde anda Marcolino?

Batista de Lima


Lembro-me do tempo em que ele juntava bagaço seco na bagaceira do engenho e nos contava histórias de assombração. Eu e meus primos ouvíamos assombrados as estripulias de lobisomens e almas penadas. Mas hoje nenhum dos primos confirma o fato. Ninguém se lembra disso. Ninguém da vila se lembra daquela tarde de domingo em que Marcolino enfrentou o Cabo Zezinho na mercearia de Vicente Raimundo. O revólver do Cabo e a lambedeira de Marcolino vitimaram sacos de farinha e latas de querosene mas nem o bodegueiro confirma o acontecido.

Em outra oportunidade, lá na Seriqueira, ele chamou Osmarina de Venâncio para dançar e levou um fora. Foi o bastante para sacar a faca e furar a sanfona do cego tocador. Então os irmãos Severino e os primos Casemiro cercaram-no em luta de arma de corte. Não houve tiro mas muito sangue se misturou no salão. Quando Marcolino viu que ia morrer, pulou a janela e embrenhou-se no juremal. Escapou. Entretanto ninguém daquela ribeira confirma o acontecido nem mostra cicatrizes. Ninguém confirma que ele sarou nas grotas com meizinhas de raízes.

Certa oportunidade, perto da Malhada Bonita, começou a aparecer lobisomem em sextas-feiras de lua cheia. O coitado do lobo-homem teve a desdita de se encontrar com Marcolino no mais escuro da Grota Funda. Travou-se luta de vida e morte saindo o bicho homem com algumas facadas nos costados e Marcolino arranhado nos braços. No posto de saúde da vila, Nego de Sula fez curativos por um mês mas nunca confirmou ser o lobisomem e sempre negou a existência de Marcolino.

Numa festa nas Abertas, rolou pau, madeira e lenha no terreiro de Tenor. Foi no casamento de sua filha Irene. Marcolino brigou com uma dúzia de parentes da noiva mas nenhum deles tem coragem de dizer que brigou com Marcolino. Até na seca de 58 eu me lembro que no Fornecimento que havia lá no Sapo era Marcolino que pegava os touros na unha, sangrava e tirava o couro sozinho. Até meu pai nega a existência desse homem. Sua sanha de matança vive presa ao passado e esquecida no presente.

Dia desses chegou informação de boca, dessas que crescem em balcão de bodega de beira de estrada, dando notícias de Marcolino. Diziam que ele, morando em Catolé do Rocha, levou duas filhas para uma dança de sanfoneiro. Um garotão atrevido, desses de braço grosso, usando gracejamento, chamou Quitéria Marcolino para dança de rosto colado, sendo rejeitado na hora. O pai dela ali por perto, pois estava cobrando a cota, puxou sua "doze polegadas", e sarjou o pé da barriga do almofadinha filho de papai. Foi o bastante para o mundo desabar por sobre Marcolino que postado na única porta de saída furou oito, botando três para finados. Naquelas bandas todos negam o acontecido.

Teve uma tarde na vila, eu era ainda criança, o vendedor de burro e cavalo, apaixonado por Gertrudes, descobriu que Marcolino era o outro homem dela. Os dois se atracaram, bem na praça da igreja, sob olhar reprovador, do seu santo padroeiro, amarraram as camisas e descarregaram as armas na barriga um do outro. O vendedor morreu na hora, deixando órfãos cavalo e burro, e Marcolino escapou, mesmo ficando sem tripa. Muitas vezes na moagem, ele estando sem camisa, exibia a desbarriga, desgraça que a arma fez. Hoje naquelas lonjuras não há cristão de barba ou trança que tenha coragem e me diga, se foi assim que se deu.

Houve o caso de uma onça, cor vermelha, lombo preto, comedora de borrego e bode, assombrando as cercanias. Quase cem homens armados se espalharam na caatinga, com todo tipo de arma para matar o felino. Foram dias e foram noites de vigília e muita arma, mas a onça só viveu até quando Marcolino resolveu entrar na caça e no terceiro rastrear trouxe a gata na cabeça já de coração varado com chumbos de lazarina. A fama de Marcolino passou por cima da serra, respingou na Paraíba, neblinou em Pernambuco, mas ninguém que mora lá tem certeza que tenha visto valentão e caçador que possua no seu nome, o nome de Marcolino.

Depois de muitos anos, encontrei com Marcolino, em jogo de futebol, no campo de Sipaúbas, com quase setenta anos, jogando de ponta esquerda. Enquanto tocava bola, quase na linha do campo, seu filho corria por fora, mesmo sem estar jogando, transportando as armas do pai que ali virava atleta. O revólver trinta e oito se chamava "azulão" e a faca lambedeira de cabo de embuá há mais de trinta anos "Margarida" se chamava. Tendo o jogo terminado, conversei com as cicatrizes que Marcolino no seu corpo quase osso transformara em troféu.

Depois de tanto desconhecimento de fatos acontecidos, envolvendo Marcolino, só me restava procurá-lo para mais um encontro confirmativo de tudo a que assisti e aqui narrei. Depois de tanto vai-e-vem, marchas e contramarchas, disse-me-disse, fuxicos e ameaças, chegamos a Taquaritinga do Norte nos contrafortes da Borborema. Lá, de cócoras debaixo de uma pedra, Marcolino se agasalhava da vida e dos inimigos. Cego de um olho, com uma banda morta de um derrame recente, algumas balas alojadas no que restava do corpo, Marcolino praticamente não vivia, jazia. Depois de muito instigá-lo, dele não consegui fala. Assim sendo, só me restava fazer esse registro. Se alguma coisa não aconteceu, após ter sido narrada passou a ter acontecido. Por isso assino e dou fé.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 13/03/12.


 

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