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  • Foto do escritorBatista de Lima

Olhos de câmera

Batista de Lima


Os poemas de Neide Azevedo são fotografias que seus olhos de câmera transformam em soluços diante das retinas da tarde. Por isso que esse seu livro "Teoria dos afetos" poderia receber o título de Vesperal dos afetos, ou Outonais, ou ainda Por quem bradam as estações. Entretanto o que mais importa é que sua mente criadora é um painel fotográfico guardado nos baús da memória. Isso, no entanto, leva a uma elegia dos instantes, já que, segundo Barthes, a fotografia anda de mãos dadas com a morte. O spectrum barthesiano se configura naquele instante que era vivo mas parou no tempo porque ficou gravado na foto ou na memória.

A poesia de Neide Azevedo não é alegre, mas também não é triste, é poesia. Como diz Giselda Medeiros, é "um soluço diante das ansiedades sob um luar travesseiro de seda". Ela humaniza o trágico com a cor verde das esperas como forma de abrir as portas de um impressionismo tão marcante que "A igreja veste-se de branco, o cálice veste-se de ouro, o vinho veste-se de roxo". Ainda inconformada com a exuberância das cores, ela conclui: "solidária, visto-me arco-ires / e abro a próxima janela". É nesse abrir janelas, umas após outras, que o leitor termina sendo conduzido por um labirinto de imagens que se sucedem até ao final do livro.

Essa não é sua primeira aventura amorosa com a palavra, antes, em 2001, ela publicava "O Resvalar do Sonho", onde, segundo F. S. Nascimento, já "adotava o assimetrismo linear". Neste livro de agora, ela já se solta mais, e utiliza variados recursos poéticos como, por exemplo, as assonâncias, para dar som aos versos. É o caso de "o pesaroso passo do passante passa" ou "O sino silencia seu ofício". São versos que sibilam da escrita aos ouvidos do leitor. Esse recurso poético faz da autora, uma motivadora de versos, uma decoradora de significantes, que tresandam significados. A mensagem respira pela superfície textual.

Outro recurso que Neide Azevedo utiliza é a colagem de imagens, às vezes até personificando seres inanimados, como acontece no poema "Dorme o poeta", pois enquanto:" o jardim derrama-se em vermelho / o jornal espalha notícias pela casa / o doce de cerejas ferve em desespero / a solitária xícara pede café / a saudade passeia por cima das horas / o livro tomba em desalento / eu ouço o escuro entrando pela porta." Em poemas seguintes esse recurso pontifica, como nas imagens: "o floco de algodão sorri brancura? / Tuas mãos festejam-me o cabelo". Essas personificações são incêndios de luz nas profundezas do verso.

É exatamente nessas profundezas do verso onde ocorre a batalha interna travada entre o dionisíaco e o apolíneo. É onde a teoria e o afeto se digladiam a tal ponto que a autora para se salvar contempla a ambos, colocando-os na vitrine do título da obra. A teoria é clara o afeto é pardo. A teoria vem na forma do poema, o afeto se aninha na estrutura profunda do verso. A teoria é uma tecedeira cuidadosa que não erra os pontos da tessitura na sua busca da perfeição do tecido do texto. Enquanto isso o afeto baila nas entrelinhas, abre as janelas do verso, mostra as intimidades dos seres, saltita, canta e serpenteia.

Essa batalha entre o claro e o escuro leva a autora a oscilar entre o pai que "acendia a vela e fazia poesia", e a mãe que "banhava-se no rio e cheirava a limão". Oscila também entre "o irmão que escondia moedas e inventava botijas e a irmã que plantava arroz e fazia lapinhas". Essas imagens pescadas da memória também alcançam os "olhos da serra fartos de fotografia, onde o sol arrasta as folhas e as sinas, correndo atrás das cores da aurora".

Ao final da luta entre essas duas tonalidades em que se enquadram os actantes da sua história de vida, surge para a autora a encruzilhada onde os criadores se dividem no grande duelo entre inspiração e transpiração. Sua memória é fonte inesgotável de inspiração mas ao se submeter aos caprichos da folha branca, Neide Azevedo vê certa desfiguração das jóias que prospectou da memória, para atender os caprichos da forma. É por isso que ela desabafa: "Estou farta das regras () Estou farta de ênclise / Oração reduzida / Prefiro a poesia () Estou farta de próclise / De isotopia / Prefiro um abraço / () Estou farta do léxico / Ardil redundante / Prefiro a divina / Comédia de Dante / Puristas, puristas / Pesados senhores, / Prefiro a leveza / Dos tantos amores."

Essa preferência pela poesia no seu estado natural, na sua nudez libertária, leva Neide Azevedo a evitar que o poema saia de terno e gravata, batendo ponto em início e fim de expediente. Sua liberdade formal faz com que ao longo do livro brotem inesperadas touceiras de metáforas nutridas de seiva poética, verdejantes de ternuras pendoadas. Seu pendor para criar imagens, que fazem pantomimas no texto, nos levou a laçá-las, algumas mais impertinentes, para, como leitor pleno de atrevimento, esboçar, com sua argamassa, essa reconstrução sobre sua estrutura em desalinho. "O amor é o deslizar da seda e do segredo / seda pura, véu, tricô, e lavanda / olhar pleno de sol / solidão cheirando a ontens / ou mãos pressentidas tecendo sonhos / em tudo que às vezes de tão perto verte abraços e adeuses" / "Solidão é pássaro de asas tombadas / pés em lentidão / chuva no telhado / enquanto se bebe o vinho tinto de ausências / numa janela sem flores / de uma casa sem portas / onde um anjo de asas serenas / transforma o agora em nunca mais". "Nessas horas a palavra é a salvação / Uma palavra que não necessite de alarde / nem de palco iluminado / mas tão somente de sete dias / como fez Neide nessa nova criação".


jbatista@unifor.br

20/04/10.

 

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