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  • Foto do escritorBatista de Lima

Olhares e olhares

Batista de Lima



Há muito tempo que pouco vejo com meus olhos. Apesar de quase cem por cento sadios, tenho que ver muito mais pelos olhos dos outros. Ou melhor, pelo olhar dos outros. Quando pensava que engolia o mundo com meus olhos, não sabia que era o mundo me engolindo pela ditadura do olhar dos outros. Voyeur é o que tenho sido. Ficar tendo o prazer sobre o prazer alheio. Se abro a TV, tanto vibro com o prazer dos outros que fico pensando ser eu aquele mocinho que lá está. Temos uma ânsia tão grande de ver, que nos tornamos quem vemos. A indústria cultural é uma feiticeira que cativa para alienar. Ela insiste, ela persiste. Ela tem aquela filosofia de que de tanto ir o cântaro à bica, um dia fica. A indústria cultural produz pratos requintados para nosso consumo. Tão sofisticados são esses pratos que os engolimos sem apurar o paladar para divisar seus sabores. É que ela trabalha com a forma e nós estamos cada vez menos preocupados com os conteúdos. Engolimos isopor enfeitado em detrimento de favo de mel. A velha frase vejo com meus próprios olhos está cada vez mais em desuso. Vejo com o olho do outro. Isso é tão perigoso, essa ditadura é tão contagiante, que até o meu olhar se torna o olhar do outro. O herói da TV e do cinema dita as regras da minha fala. Visto, como, olho e sonho como o mocinho que elegi na minha preferência. O livro que compro para ler é aquele que o resenhador da revista semanal me mandou ler. Daí que nunca imaginei que o olho que ganhei era um portal para uma armadilha. É a entrada para um território onde apenas obedeço, onde os caminhos estão prontos e as leis são sagradas. Se eu pudesse ver com meus próprios olhos, talvez tivesse que começar tudo do zero. Então, já que não tenho tanta escolha, porque não selecionar essas iguarias que se põem diante de mim? O pior de tudo é saber, num momento de racionalidade, que a emoção que de mim transborda, é alicerçada sobre a emoção forjada pelo artista. Enquanto ele finge, e finge bem, eu associo e amplio para mim as dores e os amores teatralizados. Culpa destes olhos que não selecionam. Destes olhos que se deixam levar pelo brilho de uma mentira que cravo na mente como verdade. O mundo do consumo tanto enfeitiça que não têm limites as suas garras. Cria em nós uma fome insaciável. Se nos enfeitiçamos por um bem e a duras penas o conseguimos, logo em seguida despertamos a fome para outro bem mais difícil de ser alcançado. Se resolvo ter o domínio destes meus olhos, nem que seja por pouco, o direito é um Sancho Pança que semeia e colhe provisões para o amanhã. Se abro o esquerdo, um Quixote rodopia nas nuvens com sonhos utópicos. Diante de tantas variações dos bens que meus olhos captam, concluo que ver é por demais perigoso. Isso porque há tantos bens culturais desfilando à nossa frente que de tanto passarem e repassarem vão se tornando corriqueiros e derrapando dos nossos radares mentais. Fica difícil selecionar um grão de areia numa duna, e mais difícil ainda num deserto. Diante de tanto profusão, por que não separar o olhar do olho? O olho é forma e o olhar é mensagem. O olho é superfície, o olhar é profundidade. No olhar está o mistério da pessoa. Por ele pode-se observar o destino peregrino da criatura. É no olhar onde mora o homem. Como ele acolhe os transeuntes, termina se revelando aos que acolhe. Muito mais insaciável que a boca, o olhar consome paisagens pelo portal dos olhos. Mas também é por esse portal que a realidade se desnuda. O olho desmascara a fantasia. O olho mata o sonho, o olhar instaura esse sonho. No olho se nada, no olhar se mergulha. O olho é o mesmo, o olhar são vários. Não se engana, nem se conquista com o olho, tudo isso é função do olhar. É possível se ver sem olhar, mas o olhar vê melhor por ir onde não se avista. Nesta época de tantos olhos só existe o que é visto. A modernidade tem sido um grande olho e tem feito do homem uma criatura narcísica. Cada um vale pelo que de si se faz vê. O eu torna-se um produto a ser confeitado e colocado numa vitrine. As academias e as clínicas são confeiteiras de criaturas, são escultoras de corpos. Todo esse esforço estético termina elegendo o olho como centralizador dos sentidos. O mundo passa a ser um conjunto de ícones clareados por um sentido centralizador. O escuro e o sombrio vão ficando cada vez mais alijados do nosso cotidiano. Lógico que nas sombras mais se aninham as subjetividades. Daí que o mundo da claridade exagerada vai tornando a criatura cada vez mais objetiva, racional e desprovida de valores introspectivos. Não podemos sobreviver num mundo apenas passivo de representação. Necessária se faz a busca do sublime. O sublime trabalha com o não-representável. As idéias religiosas, as paixões, o entendimento do infinito, o afeto geram um sentimento sublime de que muito necessitamos. Aplicando tudo isso à visão, pode-se concluir por uma intimidade maior do sublime com o olhar e da representação com o olho. Daí os limites do olho e o ilimitado do olhar. Tão limitado o olho que muitas vezes é preciso fechá-lo para se ver melhor, porque seu pecado principal é matar a fantasia. E aqui apresento o testemunho do poeta Francisco Carvalho que afirma: ´Aos raios do cristalino/ ardem nossas utopias. (...) A pálpebra é uma porta/ sempre aberta para a morte´.

 

22/01/2008.

 

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