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Oficina de palavras


Batista de Lima


A poesia de Horácio Dídimo tem uma função didática. Ela ensina como trabalhar o verso. Está ela colocada entre a natureza de Manoel de Barros e o poema urbano de Paulo Leminski. Quem aprendeu com quem, não interessa. Os três são grandes poetas dos nossos tempos. São quase três gerações poéticas com a mesma batida, o mesmo fôlego, as mesas lições. O poeta pantaneiro, o mais velho, ainda versejando, o afinador cearense logo em seguida e o samurai malandro, o mais novo, o único que já se foi do nosso convívio, ou pensa que foi, já que deixou significativa obra.

O mais recente livro de Horácio Dídimo traz como título "O afinador de palavras". São 230 páginas editadas pela Imprece, com projeto gráfico de Geraldo Jesuíno. Nessa nova coletânea, o professor Horácio conserva características que se apresentam em seus livros anteriores. A principal delas é a religiosidade que teve sua culminância com seu livro "A palavra e a Palavra". É uma poesia marcada pela pureza da alma, mas que não esquece os imperativos da forma e as inovações metafóricas. Isso prova que qualquer temática serve de matéria prima para a poesia horaciana.

O que mais chama a atenção, no entanto, nesse novo livro, é o seu pendor por proteger os animais, colocando-os agasalhados nos contornos dos seus poemas. Podemos até chamá-los de poemas protetores dos animais. E vão desfilando muitos deles para ingressarem nessa arca poética que é "O afinador de palavras". Todos esses animais convivem pacificamente como no Gênesis. São: leão, cachorro, grilo, lagartixa, jabuti, caracol, coelho, gafanhoto, micróbio, chipanzé, tartaruga, pavão, burrinho, borboleta, jiboia, girafa, macaco, papagaio, peixe espada, corujão, tico-tico, cururu, galo, sapo, vaca, bacurau, corvo, besouro e marreco.

Esse verdadeiro zoológico poético teria que ter um direcionamento proposital. Como sempre, a criança é o foco dessa reserva animal devidamente cuidada por quem já imortalizou anteriormente um "Passarinho carrancudo", sua obra para crianças, que mais sucesso fez até hoje. Essa sua cruzada em defesa da fauna, como um São Francisco da modernidade, fê-lo ingressar no mundo lobatiano quando encetou seus estudos de doutorado em Literatura, com a tese "Ficções Lobatianas: Dona Aranha e as Seis Aranhinhas no Sítio do Picapau Amarelo".

Horácio Dídimo tem dedicado a vida à profissão de professor. Sempre na área de Letras. Primeiramente como professor de Português, depois ministrando Literatura. É pois de se esperar que direcione algumas de suas poesias para a arte de versejar. Por isso que seus metapoemas se tornam notáveis pois são produto de seu magistério do dia a dia. Ele é mestre na arte da construção poética. Sabe preparar a argamassa e depois soerguer essa construção, questionando a todo tempo o potencial dos ingredientes que utiliza. "O poema é um fio / um pavio / um assovio / ou é um rio que corre / rio-rindo rio-rindo rio-rindo / sem pé nem cabeça". Há, como se observa, um rio correndo nesse poema.

Esse viés didático na poesia de Horácio Dídimo prossegue quando ele mira o ato de leitura. Afinal, no seu mister de professor por longos anos, deve ter concluído que um dos problemas a afetar a pouca aprendizagem de nossos alunos é a falta de leitura. Por isso ele investe nessa vertente da aquisição de saber. Seu poema "Leitura" ensina como ler seus poemas: "Quem aprender / A ler os meus poemas / Pelo avesso / Verá que o que parece ser o fim / É apenas o começo / E quanto mais eu me escondo / Mais eu apareço". O professor nos quer dizer que a biografia do poeta está no poema. Nenhum gênero literário é mais revelador de seu autor do que a poesia lírica. Essa lição é transmitida, falando de si próprio, da sua arte poética.

Esse afinador conhece bem a matéria prima da sua lida: a palavra. "Faço amizade / com as palavras". É sua estratégia para dominá-las. Amar as palavras é o primeiro passo para adentrar seus domínios e ter poder sobre elas. "Quem é que brinca / de esconde-esconde / com as palavras?" É evidente que é o poeta. "Toda palavra / esconde um verso / no seu anverso". Significa que não há palavra desprovida de possibilidade poética. O que é preciso é de um afinador que lhe torne cortante, burilada e prenhe de argúcias e sustanças. Horácio Dídimo tem esse poder de abrir a barriga das palavras, e delas retirar tesouros escondidos, como quem tira a ova de um peixe em tempo de piracema.

Há, entretanto, dois portais outros, em que se conhece outro Horácio. Um responde pelo afeto familiar e outro, pelo carinho com os amigos. Daí que nesse seu mais recente livro ele canta ninares aos netos sem cair nas areias do simplório. Essa parte do livro ele nomeia de "O livro dos netos". É nesse momento que ele transfigura coisas e bichos, depois os põe nas mãos dos garotos como brinquedos verbais para crianças. "Vocês sabem / o que é / amora? / A mora demora? / ou é o amor / agora?" O poema é um mimo para a criança mas é um desafio para o adulto. Por isso que o poeta termina por afirmar que "Qualquer tiquinho / É um aumento / Qualquer passinho / É um movimento".

Do seu afeto pelos amigos ele extrai a matéria prima para seus "Exercícios de admiração". É aí que sua peculiar humildade transcende qualquer privilégio geracional. Ele começa cantando loas a Eduardo Jorge, poeta da novíssima geração da Literatura Cearense. Poderia ser seu filho caçula. Depois vão aparecendo poetas que tiveram seus livros lidos e suas mensagens poetizadas por Horácio Dídimo. Entre eles estão: Marly Vasconcelos, Nilto Maciel, Aíla Sampaio, Ivoni Pereira, Paulo Eduardo Mendes, Regina Pamplona, etc. Por fim, o leitor termina a leitura dessa coletânea com a confiança de entregar para polimento e afinação qualquer instrumento verbal na oficina de Horácio Dídimo.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 03/09/13.


 

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