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Oferta de emprego

Batista de Lima


Precisa-se de alguém para conversar. Assinamos a carteira e pagamos férias e décimo terceiro. É preciso que seja alguém que mais ouça do que fale. Alguém que tenha feito curso de audição, que tenha experiência de pelo menos dois anos de escuta. Exigimos boas referências do empregador anterior. Não importa idade, nem sexo, cor ou grau de instrução, apenas prática de audição. É preciso que seja alguém que ouça oito horas por dia, com direito a folga no fim de semana. Mas pode ser alguém que fale, apenas quando for solicitado falar. Todavia, mesmo que fale, não fale pelos cotovelos. Que fale muito mais sutil de que quando apenas ouve. Que fale sem falar, porque precisamos mesmo é de alguém que ouça. Mas que ouça com atenção, com prazer, vivendo intensamente cada palavra ouvida. Precisa-se de alguém para conversar sobre coisas nunca conversadas. Pode ser alguém que viveu sempre no mar e que veio à terra para ver o mar por outro ângulo. Mas pode ser alguém que viveu sempre no mato e que veio à cidade para sentir falta do mato. O importante é que seja um conversador que pouco fala e muito diz. Que ouça pelos poros, pelos olhos, pelos gestos. Que ouça principalmente no calar, um repetir da fala. Já tentamos encontrar conversadores de pouca fala e muitas oiças mas só apareceram tagarelas com surdez. Só chegaram faladores, nunca ouvintes. São pessoas que vêm montadas em frases feitas, com palavras-chave, com roteiro pronto, respostas repetidas e pensamentos acabados. Precisamos de alguém que ouça bobagens como se fossem grandes ensinamentos, profundos saberes. Que seja alguém que valorize o sem valor. Que olhe uma verruga como se fosse uma primavera, que veja em um câncer de pele, uma nuvem tapando a lua. Que saiba de luares e de sóis que se escondem por trás das coisas. Remunera-se bem alguém que converse sentado sem a menor pressa para se levantar. Mas que se levante quando a ordem apenas for pensada. O importante é que seja alguém que permaneça ouvindo, mesmo estando longe, e que estando perto, ouça durante todo o envelhecimento da cadeira. Que mudem os tempos, os governos, mas que dois ouvidos estejam ali, a postos, para ouvir as mais belas sandices, as mais feias verdades. Pode ser alguém que opine quando for solicitado, mas que antes de falar, ouça muito a si próprio e que vista seu dizer com palavras de ternura. O que queremos mesmo é um ouvinte que entre em casa sem tocar a sirene e sem abrir o portão e sem escalar o muro. Tem que ser alguém que não perturbe o sono de quem está dormindo, mas que se encante com o ronco do dorminhoco, tirando dele belas pautas de melodia. Que seja alguém que vele, quando não está ouvindo o que termina por ser uma bela forma de ouvir. Precisa-se de alguém que ouça pensamentos e se encante com o despencar da folha que se desprendeu da árvora e que proteste contra a flor que deixou cair a pétala. É preciso que seja alguém que conheça os clássicos da literatura mas que nunca fale deles e que conheça também as histórias de mesa de bar. Alguém que leia receitas de médicos e interprete bulas de remédio, que conheça de computadores e painéis de carro, que tenha tido sarampo, boqueira, escorbuto e beribéri, quando criança. Precisa ser alguém que tenha vivências de sacristias a lupanares. Que todo esse cabedal de vivências esteja gravado na sua mente, pronto para ser contado, mas que nunca o seja. Pois é necessário que seja alguém que se entusiasme com as mais bobas histórias que ouvir, como se nunca tivesse ouvido coisa tão bela. Precisa-se de alguém para conversar oito horas por dia, com direito a almoço em silêncio. Alguém que ouça o clamor das verduras e dos cereais postos no prato. Se, por acaso, cordeiro for servido, que o ritual seja tão sagrado, que o animal de tão bem tratado, continue pastando no campo. Que seja alguém que lave as mãos antes das refeições e que ande de meias pela casa, e ouça a porta que quer ficar aberta e o quarto que quer ficar escuro. Alguém que se vista, mesmo quando se despe. Precisa-se de alguém para conversar em silêncio. Alguém que fale só de ouvir. Pode ser alguém que colecione borboletas ou que tenha sido tratorista ou delegado. Mas pode ser uma dama lavadeira, freira ou mulher de circo. O importante é que seja alguém que saiba ouvir. Que não tenha tosse nem micose, que não cuspa no chão nem masque pele de fumo, que não grite ao telefone nem fale mal do vizinho. Pode ser alguém que reze antes de sentar à mesa e se benza ao falar em Cristo, mas que não cante benditos de sua igreja, nem conte tragédias da rua. Precisa-se de alguém que pareça ter nascido no fundo da casa, mesmo que tenha guerreado na Coreia, pescado no Amazonas ou escalado o Evereste. O que se precisa mesmo é de alguém que saiba ouvir estrelas, contar os pingos da neblina e enfeitiçar serpentes. Que seja alguém que interprete sonhos, leia crônicas de jornais e saiba jogar todos os jogos de cartas. Pode ser alguém que colecione santinhos de olhos mortiços, reclames de mães de santo, prospectos de vendas a prazo e panfletos de candidatos a vereador. O que se precisa mesmo, é de alguém que ouça bem, porque o mundo todo fala, prepara falante, educa orador e começa a faltar ouvinte. Ouvinte é mão de obra escassa. Não há curso preparatório para ouvinte, mas agora, com esse emprego aberto para alguém que só ouve, pode ser que diminua essa multidão que só fala. Precisa-se, por fim, de alguém que chore ao ouvir histórias de passarinhos, que ouça a chuva no telhado, enquanto ensaia valsa. Alguém que ouça os donos da casa como os anjos ouvem as histórias contadas pelos santos em feriados do céu. Precisa-se de alguém ouvinte que sendo homem, não tenha músculos e se mulher, que não tenha dores. Precisa-se de alguém que seja todo ouvidos, porta de entrada, sala de espera, banco de jardim, rede de balanço, sol da manhã, luar de agosto, pássaro e pêssego, fonte e folha, mel e mirra, nuvem, neblina, luva, luar, fogo, terra, água e ar.

 

06/01/2009.

 



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