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O verbo árido do Ribeiro do Barro



Batista de Lima


Ele veio ao mundo em 1973, em Orós, mas fez de Barro sua morada como o joão que nos dá lições de chuvas. Professor por acidente, alumiou-se lamparinoso na incandescência do verso. Estava escrito desde os cafundós das eras: serás poeta por cima de pau e pedra. Cleilson Ribeiro mira dos alpendres telúricos, varizes e rugas da terra ressequida e fareja o cheiro feudal de uma saudade incendiária. Depois, num soluço banido de seu estro, cavalga as ossaturas das cacimbas em busca de uma água sem insígnia.

Ser poeta é sua sina, o resto é presságio. É o poema que o põe em descaminho, instaurando um lugarejo de fogo, gravado no sal da palavra, verdadeiro afago de chicotes. Por isso foi, com devidas precauções, que em 2004 me hospedei nas páginas auríferas do seu "Do olhar mirando para trás". Diante de tanta fartura poética, pensei que o vate havia se esvaziado por ali, pelo resto dos dias. Mas agora vem ele sertânico, incendiário e incandescente, desembeiçando doidices metafóricas e botando as coisas para enxergá-lo no vazio. Poeta polidor de verbos, amola as ferramentas imagéticas e sai plantando atrevimentos poéticos.

Esse agora "O silêncio laminado no casulo" ganhou o prêmio Caetano Ximenes Aragão, mas merecia ganhar todos os prêmios que por aqui se distribuem como o melhor livro de poemas de 2011. Acontece que o rapaz vive de tocaia lá no Barro do Major Zé Inácio, contando os calos que a mão lhe oferece, e cantando litanias à desolação e ao desassossego. Como seu avô, vive "ansioso por ver pingar do ventre das nuvens / um certo rio acantoado, / que se guarda no coração das chuvas". Dessas chuvas brotam caudalosos rios de palavras.

O que canta esse moço? A vida que se esconde nas canções descabeladas e esquecidas sob a fuligem ancestral dos caminhos. Canta encantamentos, com seu olhar feito de mundo. Humaniza coisas predestinadas ao esquecimento de seus códices. Pode ser uma procissão de poeirentos olhares, uma tardezinha rejeitada pelo dia ou uma novena pesarosa cuja ladainha são resmungos de coisas perdidas. Por isso que, telúrico, esbanja conhecimentos do chão que o viu brotar, desde o nascimento das chuvas aos estertores da tarde que o sol salgou com sua língua de fogo.

Por conhecer seu chão, seu adubo, é que ele canta a agrestividade da falta de chuva, que inferniza a paciência dos mais velhos, rói a esperança, enquanto ciranda o desespero, estilhaçando a paisagem com as lâminas da ventania. Quando termina o dia de fogo vertical, "a noite caminha sob a salmoura das pedras", assobiando palavras desusadas. Para enfrentar essa fornalha é preciso o couro curtido, herdado das gerações pretéritas, e a palavra poética feito brisa de outubro. É preciso adormecer entre suores e acordes de palavras que brotam de "uma voz antiga retendo dores num ladrilho". Cleilson Ribeiro semeia escamas que transformam esquecimentos em lembranças, desesperos em alvíssaras. Essa mania de aguar gravetos que se tornam plantas é milagre que só poetas transfiguram, derretendo resíduos de linguagens.

Cleilson Ribeiro transforma a morte em passarinho. Depois alimenta revoadas com imagens barrocas cravadas em adjetivos inusitados e locuções provocadoras. É então que brotam: "sorrisos enferrujados", "lembranças idosas", "palavras esfaqueadas", "résteas ensanguentadas", "olho exausto", "aboio extenuado", "vilarejos desesperançados", "horizontes engaiolados" e "dias destroçados". Insatisfeito com essa adjetivação que é bem mais ampla, ele parte para o uso das locuções adjetivas ainda mais arrepiantes. Então vão aparecendo: "varizes da terra", "ossaturas das cacimbas", "sal da palavra", "afago dos chicotes", "ventre das nuvens", "fio de vento", "pólen de deus", "cinzas da eternidade", "latifúndios dos retratos" e "pupilas do tempo".

Por essas e por um turbilhão de outras imagens, dá para se fisgarem intertextualidades de Manoel de Barros e Francisco Carvalho. Do poeta pantaneiro, esse telurismo em torno do traste; de Carvalho, a palavra posta em liturgia. O poema de Cleilson é ritualístico. Não importa o que esteja no altar dos sacrifícios, tudo é deificado, de forma que o poema fungue no cangote do vento, palavras entristecidas. É por isso que em "Espera" ele revela a origem do desamparo: "Em mim é sempre tempo de espera. / Entre os dedos / guardo em desamparo, uma voz esquecida para sempre / nas cinzas do poema... / Não sou afeito a ternuras desmedidas". E conclui que no caminho do verso, vai "recolhendo os pedaços / de uma esperança / que ainda não floriu".

Mesmo com suas intertextualidades, seus melhores momentos são os que o poeta se solta de qualquer influência e passeia só, por si próprio. Começa pela insônia que é o mal benéfico dos escritores. Sua insônia faz com que a noite se torne "um açude de brasas açucaradas". Faz da noite "uma lembrança lambida pelo rumor dos mortos". Depois da insônia vem a desesperança que em estado de palavra faz com que a primavera se torne inútil no poema e que o caminhar seja um permanente tropeço em luzes que não se acenderam. Por isso que seu maior tesouro são seus poemas tristes com suas vísceras exalando sinestesicamente o som de cigarras invisíveis. Por isso que nesse verão todo não lhe cabe mais falar aos passarinhos.

Depois disso tudo supõe-se que Cleilson Ribeiro revirou a última víscera do seu sertão combusto. Mas sertão é porteira aberta, casa sem parede, parede só portas. O seu sertão é o mesmo de qualquer leitor. O diferencial está na forma de ser tão ou tão ser. Esse poeta abre portas para dar ao leitor uma visão de coisas viradas ao avesso. Ele olha na contramão de nosso olhar comum. O importante é a fratura que ocorre na nossa ida, ao encontrá-lo na sua vinda. Não concordo com ele quando afirma no seu belo poema "Exílio": "Aqui estou sem pátria e sem poema". Cleilson Ribeiro através de seus poemas encontrou sua pátria. Que bela pátria!


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 03/01/12.


 

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