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O vendedor de óculos

Batista de Lima

Houve uma época em que ele possuía uma bodega que, de tanto crescer, passou a se chamar mercearia. Era sortida. Tinha de tudo, principalmente uma grande freguesia. Do pão e da manteiga, passando pelos remédios primeiros, até chegar à foice e ao machado, podia pedir que tinha. E os vizinhos vinham também puxar dois dedos de prosa, falando de inverno, seca, fartura e carestia. Era um ponto de encontro de todos do lugar. Ali as notícias chegavam primeiro. Depois saíam engordando de rua afora.

Cidadezinha acanhada, cochilava na beira do riozinho que só botava água nas chuvas. Ninguém passava por lá. Era fim de linha. A estrada que levava era a mesma que trazia. A maior produção do lugar era de meninos tristes. E quase todos iam embora, só ficavam os velhos e as crianças.

Um desses meninos um dia voltou, e voltou pimposo. Chegou com relógio de pulso e dente de ouro. Foi chegando e botando logo uma enorme mercearia que deu o nome de mercantil. E começou a vender a prazo e oferecer todo tipo de mercadoria. Era uma concorrência enorme, devastadora.

A mercearia antiga começou a amofinar e voltou a ser bodega. E o mercantil crescia tanto que alguns já chamavam de supermercado. E a bodeguinha amofinando. Só apareciam uns fregueses mais antigos, que vinham tomar uma bicada para abrir o apetite. O garoto que ajudava no balcão foi dispensado e, no dia seguinte, já estava com o dente na fresca como caixa do concorrente. E a bodeguinha mirrando. Até os cachaceiros estavam rareando. Foi então que o velho proprietário pensou em mudar um pouco a sua atividade.

Certo dia, indo a uma cidade vizinha encontrou uma farmácia que vendia óculos. Vendia até óculos de grau. O freguês chegava, experimentava alguns deles e, quando encontrava um que lhe ampliava a visão, comprava e passava a usá-lo. Mas para conseguir vender os óculos o proprietário quase falido utilizou uma estratégia que lhe rendeu lucros. Arranjou uma agulha grossa e grande de costurar saco de algodão e colocou na gaveta, por trás do balcão. Quando o freguês chegava ele fazia o teste de visão.

O freguês sem óculos olhava para os dedos dele enquanto ele dizia que estava segurando uma agulha. Mas ele não estava segurando agulha nenhuma. É evidente que a agulha não era vista. Ele então trazia um par de óculos colocava no rosto do freguês. Em seguida apanhava a agulha grossa da gaveta e perguntava para o freguês se o instrumento estava sendo visto. O comprador, na sua inocência, vibrava com o milagre da vista recuperada e comprava o par de óculos. E assim, muitos compradores iam aparecendo e o negócio ia progredindo.

A bodeguinha teve alento e ficou de novo com cara de mercearia. Vinha gente dos cafundós dos pés da serra para comprar os óculos milagrosos. Já tinha até uns vidrinhos com água do pote que ele dizia ser colírio e ajudava na recuperação da vista. Era só pingar no olho antes de dormir que a vista amanhecia descansada e pronta para receber os óculos da diária. Todo aquele povo estava a usar os produtos do milagreiro oculista. Era um charme usar óculos naquele lugar. Era gente da visão perfeita a usar os pincenês para ver melhor e ficar mais bonito. Tinha gente que passava meses e até anos mantendo o selo na lente dos óculos para dizer que eram novos.

De tanto crescer no seu negócio de visão, o comerciante chegou a comprar um Jeep 51 e uma fazenda de gado. Passou a usar roupas de linho fio fino e arrematar prendas caras nas quermesses. Passou a tomador de cerveja no Bar da Bia e cresceu a barriga. Comprou um terno de gabardine e uma calça de suspensórios. Nas eleições candidatou-se a vereador e foi eleito, trocando óculos por voto. Ficou lustroso e discurseiro. Em qualquer ajuntamento de pessoas, sua voz tonitroava e só parava quando alguém chorava de emoção. Quando apareceu por lá uma certa dama trejeitosa, esquipante e brejeira, rapidinho ele conseguiu casa, comida e cama na ponta mais escondida da rua. A moça de nome Dalila se tornou Dalilinha e perfumou seus dias, de extrato e frescor.

Foi então que suas pretensões políticas levaram-no a se candidatar a prefeito do município por partido da oposição. O Coronel, dono do lugar, que também se candidatou depois de oito vezes eleito e de mandatos cumpridos, sentiu-se incomodado com o perigo de perder o pleito. Foi só trazer doutorzinho formado na Capital e especialista em coisas de olhos para botar consultório no lugar. Daí por diante o antigo bodegueiro começou a dar de ré igual a seu Jeep 51 que apareceu com areia no tanque de gasolina. O doutorzinho convocou o Conselho Regional de Medicina e denunciou a farsa dos óculos. Dalila passou de mala e cuia para os aconchegos do novo doutor dos olhos. A população revoltou-se com o embuste do falso oculista que anoiteceu e não amanheceu. Depois de tempos, alguns caixeiros viajantes trouxeram notícias dele de passagem por Codó, Tuntum e Altamira, com uma velha sacola cheia de óculos para vender nas ribeiras do Norte.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 20/01/15.


 

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