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  • Foto do escritorBatista de Lima

O tear de Maria Teresa

Batista de Lima




A colheita do algodão estando para ser realizada, às vésperas, Maria Teresa ia colher os melhores capuchos para alimentar o seu tear. Antes, porém, tinha que descaroçar tudo que havia colhido, e depois batia para que as maçãs de fibra se entrelaçassem, formando uma grande e única unidade. Passo seguinte era cortar tiras daquela lã e colocá-las nos fusos. Eram fusos porque para fiar tanto algodão era convocado um adjunto de mulheres da região que vinham fiar seus novelos de fios branquinhos.

Maria Teresa era irmã mais velha de minha mãe. Casara cedo e cedo ficara viúva, com três filhos para criar. Montou o tear como forma de sobreviver independente da ajuda que vinha do meu avô. Era um tear que ocupava uma sala inteira de uma casa antiga que ficava entre a casa grande de seus pais e sua moradia. Ali ela passava os dias tecendo redes e lençóis. A qualquer hora do dia, ouvia-se o barulho daquela engrenagem de madeira. Os fios iam saindo e formando o mamucado ao se entrelaçarem como palavras que formam frases.

Eram muitas as irmãs de Maria Teresa e todas tinham muitos filhos. Ela além de fiar redes para os parentes ia também acompanhar os resguardos de cada uma, ficando algum tempo como babá dos recém-nascidos. Daí que ao crescermos, tínhamos um afeto especial por aquela tia a que chamávamos Tedesa. Seus carinhos, em especial seus cafunés, nos acompanharam na vida como memória viva. Era a segunda mãe de todos os sobrinhos. Botava-nos a dormir com belas canções de minar e cuidava das irmãs parturientes com desvelo e ternura especiais.

Tedesa não fazia apenas tecidos, ela parecia tecer poemas. Suas redes eram como palavras felizes que depois de unidas formavam fios, frases entrelaçadas no tecido textual. Eram tecidos de afetos avarandados que promoviam sonos e sonhos reconfortantes. Dormir nas suas redes era desfrutar de seus cafunés que iam brotando na memória impregnada de infância. Mas não era uma infância apenas pessoal. Era uma infância das coisas, que passava a nos embalar. É tanto que nesses momentos o engenho passava a funcionar, puxado por bois obedientes, a fornalha regurgitava de mel cheiroso e era possível vislumbrar meu avô confabulando com as rapaduras.

Foi inspirado nessas imagens inapagáveis que também me meti a querer tecer minhas redes. Comecei procurando no roçado da linguagem as palavras que sorriam para mim. Sempre gostei de palavras simpáticas, daquelas que nos abraçam e nos inspiram a vasculhar sonhos. Essas palavras são tão amáveis que se ligam umas às outras, produzindo frases de sentidos inesperados. São adjuntos de fiandeiras como abelhas em colmeias. Daí, quando menos se espera, elas já produzem parágrafos como favos. Nesses momentos a gente se põe à margem da construção e até parece que palavras, frases e parágrafos entram em conluio para terminar o texto. É o milagre da criação.

A escrita é, portanto, uma tessitura, porque além da tecedura verbal, o texto adquire uma musicalidade que oscila entre pauta e frase. Acontece que o tear de Tedesa também era musical. O movimento que ela fazia com os pés naquelas tábuas que moviam o tear provocavam um som concatenado de onde evoluía um ritmo de percursão. Acredito que nós que convivemos com aquela melodia desproposital tenhamos sofrido influência no ritmo do que compomos. Tedesa imprimia musicalidade em tudo que fazia.

Não era apenas do tear que evoluía ritmo. Havia na cozinha da casa grande um pilãozinho de pilar temperos, principalmente pimenta do reino. Aliás todas as casas possuíam esse instrumento. Acontece que o da casa dos nossos avós era especial porque era Tedesa que pilava os temperos na janela da cozinha que ficava virada para o norte. Ali ela ao pilar, promovia um batuque tão ritmado que chamava a atenção de todo mundo pois só ela sabia fazer aquilo. Da mesma forma seus cafunés, sua voz, seu andar, tudo era ritmado.

Tedesa nos deixou aos 98 anos e foi batucar no céu. Lá ela deve estar tecendo redes, e pilando temperos. Ela deve ser consciente de que sua herança, ficada entre os que com ela conviveram, permanece viva. Algumas de suas redes ainda hoje são guardadas por familiares. Depois que ela desativou o tear os algodoais morreram de tristeza. Mesmo assim aqueles lençóis brancos, aquelas varandas de desenhos variados, além de ainda povoarem alguns baús, ainda alimentam nossa memória. Tedesa se foi, mas até hoje não conseguiu nos deixar sozinhos.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 08/11/2016.


 

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