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  • Foto do escritorBatista de Lima

O sétimo palmo

Batista de Lima


Gerôncio herdou a profissão do pai, coveiro. Vivia numa cidadezinha acanhada, de um povo que não era morredor. Sipaúbas produzia, no máximo, um cadáver por mês. Nascimento era quase todo dia. Bastava o garoto ficar taludo era engolido pelo asfalto da Br, que passava ao lado, e despejado na capital. Só voltava na festa do padroeiro. O coveiro tinha que ter sua rocinha de milho e feijão e ainda bater os repiques do sino para poder sobreviver com sua companheira numa casinha triste na ponta da rua.

Um dia a mulher pegou uma erisipela e foi morar no cemitério numa cova muito bem cavada pelo marido. Gerôncio não se conformou com o passamento da consorte. Sempre que ia ao cemitério, era como se sentia um pouco aliviado. Ele sentia a presença da mulher. Chegava a conversar com ela, mesmo não recebendo resposta pelo que preguntava. Por outro lado, deu para beber muito. Só parava de beber quando tinha cova para cavar. E criou a mania de dormir no próprio cemitério. No seu delírio de embriagado passava a noite em conversa com sua mulher. Era só se encostar em um túmulo e dormir profundos sonos enfeitados de sonhos.

O povo da cidade não sabia desse estranho costume do coveiro, por outro lado a população do cemitério nunca reclamou de sua presença no campo santo. Assim, os dias iam passando e cada vez mais Gerôncio ia ficando como hóspede daquela casa de mortos. Improvisou no fundo do cemitério um banheiro de palha onde tomava banho e até se servia como sanitário camuflado que era para o pessoal ali morador não observarem-no desprevenido.

Conversava até alta noite com a mulher, depois quando ela cansava e adormecia ele ia para o sepulcro do seu pai, onde pedia a bênção e caía no sono. Ali não faltava com quem conversar. Eram pessoas sem pressa, sem horário marcado, sem medo de escuro. Às vezes até levava recado de um túmulo para outro, às vezes inventava fuxico entre os mortos mas ninguém se alterava. Não havia confusão, e todos levavam uma convivência fraterna. Até inimigos figadais de outros tempos ali ficavam calmos e não se molestavam. Aqui, acolá, aparecia um cachorro farejador em busca de osso, mas logo que pulava o muro, Gerôncio o enxotava com vara de marmeleiro. A população do cemitério já o tinha como delegado, pois botava ordem no lugar.

A morte de algum habitante da cidadezinha quebrava sua rotina. Todo um ritual era seguido. Ele ia à casa do defunto, vestia o morto, preparava o caixão, as flores, as velas e fazia as recomendações aos familiares, sempre acompanhado de palavras de consolo. Em seguida subia a torre da igreja, e para desespero das andorinhas e dos morcegos batia o primeiro repinique de aviso à população. Depois descia e ia ao cemitério cavar a cova. Esse era trabalho mais duro mas em compensação era o mais divertido pois todos do cemitério como que se engalanavam para receber o novo habitante. A coisa era tão séria que ele sempre cavava o sepulcro do novo morador próximo de algum familiar ali enterrado. E quando o morto era rapaz jovem e bonito ele procurava enterrá-lo bem distante da cova de sua mulher. Aliás esse ciúme que tinha da sua mulher, vinha desde os tempos de namoro.

À hora do enterro ele se transformava tanto, que vestia a melhor roupa e muitas vezes até interferia nas preleções do senhor vigário. Tudo isso era irrelevante diante do alumbramento que ele tinha ao cavar a cova, principalmente quando chegava ao sétimo e último palmo da profundidade. Era naquele patamar onde os mortos mais conversavam. Na escavação, quando ele chegava naquele palmo, ficava aturdido com a estridência de tantas vozes entrelaçadas que chegavam aos seus ouvidos. Eram os preparativos da festa de recepção do morador que viria. Daí que ele demorava horas só na escuta do barulho.

Foi por isso que criou a rotina de cavar a cova logo após o anúncio de alguma morte, que era para ficar ali por mais tempo, no sétimo palmo, naquele converseiro subterrâneo. Era como se houvesse canais de comunicação por baixo da terra, que fizessem com que todos os enterrados se comunicassem. E ele era muito querido, não pelo fato de ser o coveiro, mas principalmente por trazer notícias frescas da cidade, e, vez por outra, um novo habitante carregado de acontecências.

Por tudo isso, ele deixou uma cova permanentemente aberta onde à noite vinha se deitar no sétimo palmo para conversar com todo mundo, até o sono chegar, e depois adormecer placidamente, ouvindo o ressonar de sua querida amada. Assim, sem que ninguém soubesse dos motivos de tanta felicidade que transmitia, Gerôncio tornou-se hóspede noturno do cemitério, em perfeita comunhão de afetos com todos os seus moradores. E ali no sétimo palmo ele tinha seus mais belos delírios.

Acontece que já fazia alguns meses que ninguém do mundo dos vivos se habilitava a mudar de endereço, vindo para a festa do campo santo. Sem nenhuma morte, Gerôncio nada ganhava para sua cachaça e outros alimentos do mundo dos vivos. Isso o foi deixando irritado e exigido pelos seus companheiros do cemitério.

Até que um dia morreu um ex-prefeito e que ia ser enterrado no dia seguinte. Recebendo logo de véspera grande parte do dinheiro do trabalho, Gerôncio com alguns amigos foi beber o morto pelas bodegas da cidade. Bebeu, festejou o dinheiro antecipado e revelou que a cova já estava cavada, esperando o morto.

Bebeu, comeu e negou-se a pagar. Trambecando pelas calçadas, sumiu de rua afora, até se perder na escuridão. Mas foi mesmo se deitar no sétimo palmo da cova aberta para o figurão que vinha. Os amigos enraivecidos lhe armaram uma pequena vingança. Pensando-o dormindo no seu casebre, foram até o cemitério e entupiram a cova aberta com a terra que lhe estava ao lado. Ouviram apenas alguns gemidos por perto, vindos do sétimo palmo, coisa de mortos, aos ouvidos de bêbados.


jbatista@unifor.br

13/04/10.

 

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