top of page
  • Foto do escritorBatista de Lima

O sol das coisas


Batista de Lima





Os meninos subiram a serra para conhecer o céu. O céu pulou para outra serra, outra distância. Os meninos continuaram subindo serras, cavalgando distâncias e miranças. Foi aí que Carlos falou: “-E agora, José?” E José respondeu: “Se sou andante, é porque no meu circo, o pano baixou-se e os palhaços se retiraram levando minha infância. Se vivo escalando serra é porque ela é a mãe de todas as águas roncadeiras e em sua velhice estão impressas as digitais de meus fantasmas”.

Mestre nessas andanças, aquele Fernando, irmão d'além mar, do fundo de uma tabacaria, gritou para os pósteros: “Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta/ ao pé de uma parede sem porta/ e cantou a cantiga do infinito numa capoeira,/ e ouviu a voz de Deus num poço tapado”.

Se a porta existisse, seria rouca de chorar ausências, com suas paredes secas, sucumbindo ao sussurro de folhas passageiras, porque a construção do poema é uma casa velha, muito mais porão do que sótão, muito mais abismo do que pele. E os que ali se postam à mesa são ancestrais a roerem meus ossos, com os quais não posso mais, já que perdi meus braços no último dos nossos abraços. Quanto à velha aroeira, no fundo da casa, suas folhas continuam caindo sobre meus sonhos, impiedosamente. E o velho cão ladra em torno das oferendas, depois é comido por elas. Quanto a minha mãe que foi levada pelas águas de março, ela volta sempre na tristeza das mulheres e no olhar gris que o luar me esconde.

Nessas horas, a lágrima é pequena para a grandeza da precisão. Afinal, nascido no último dos anos quarenta, crescido como o mandacaru e o juazeiro, espinhento, enraizado, um dia conheci a chuva, chuva rara. Foi aí que o Salgado me tragou, indo me atirar na praia, grão de areia entre dunas. Transformado, não quero água, quero sede, não quero pousada, quero estrada. Na minha folha corrida, trago no peito o grito abafado do medo, a esperança mofada a sete chaves trancada no fundo mais fundo da misteriosa caixa de Pandora. O rio que transporto tem nascente nos olhos e meus passos sabedores de seus caminhos são de cachorro viciado ao passo do dono. Quando me deram a tristeza, não pesaram seu peso nem mostraram o local de despejo.

Tive então que cultivar esse corpo corcunda e é com ele que vou em frente, gemendo ao compasso do cansaço, até vencer o poder do passo. Meu primeiro olhar encravou-se no nascente, cavou um poço no horizonte e só aumentou minha sede. No alto de uma montanha, espetei as dores e a solidão. Por enquanto, tenho tentado retê-las, acorrentá-las numa casa sem portas. O que consola é que há uma gota de poema em cada martírio, como um cheiro de natureza em cada rosa escapada. Enquanto isso, vou cantando o inverso do verso, o desencanto do canto, a vantagem do medo, o perfume da dor e as vantagens do tombo.

Quanto aos viventes da minha primeira e mítica Serra Negra, eles continuam desfiando prantos com dedos de léguas e olhando para o céu ao cair dos dentes. Mas é lá, naquelas lonjuras, onde a velha Vitalina ainda faz cocada com mais alma do que coco, com uma semana de criação, onde leite, açúcar e coco não tem importância tição, fogo e brasa. O mais importante é que Vitalina se põe no caco e vai na cocada e no sétimo dia descansa absoluta como fez Deus na criação.

Conheço pois esse povo, porque carrego seu jeito esquisito de dobrar esquinas e desdobrar as dores como se de fibra fossem. Conheço esse povo porque herdei seus pés, suas longas raízes, seus pesados passos, porque herdei seu caminhar que os caminhos guardaram. Não dá, pois, para me esconder dessa multidão que me constitui. Sou alça, sou andor e carregador fiel dos outros em mim.

Nessa procissão de silêncios, ferramentas afiadas prontificam-se em espreita de antevéspera, esperando a palavra, peixe no anzol, caça na mira. É preciso pegar a palavra pela surpresa, no bote, botá-la na engorda para a grande ceia, onde as sílabas atadas receberão de grão em grão, o grito do criador: -crescei e multiplicai! Nunca vou esquecer, pois, que minha primeira função foi ouvir palavras batidas do coração, que a segunda foi tecer palavras com raízes no chão, e que a terceira foi fundar no calar o repetir da fala. No entanto, destas e doutras funções uma se me fez por demais difícil, a de palavras polir. A palavra mais difícil que encontrei para polir e que continuo polindo foi essa que me trouxe o corpo. É que este corpo meu é corpo como qualquer coisa que se sustenta no por aí. Mais que corpo, todavia, é o que não tem corpo deste corpo, é o que não sendo peso é o que mais pesa. Por isso que transporto esse riso sem jeito que não houve jeito de deserdar.

Por isso que me iludo, pensando que aqui cheguei. Não cheguei, chegamos. Aqui chegamos, ancorados em alguma aurora, penteando os dias na cabeleira da vida, plantando verbos no jardim dos signos, cutucando a vida com a vara da esperança. Nesse jardim, o que brota é a palavra armada, pronta para me pescar nos caminhos primeiros do meu coração, que mais longe cada vez estão. Nesses momentos de dor em que pesa o não ser nada, quando tudo faço por esse outro que nunca fui, choro, e quando choro não é pelo fato de ser tão pequeno, mas pelo ato tão pequeno que é me esconder para poder chorar.

Não é pois sem razão que há muitos anos sou amargo, sal do tempo, lágrimas na calçada, chuvas de verão. No traçado do meu perfil, poesia não é apenas intenção, e o grito é a contramão dos que me planejam em vão. Tenho um metro e setenta de calos, com muito mais de cicatriz, o resto é a vantagem de ser bem mais coice cada berro desferido. Para mim, a poesia é o traço que não dei a torcer. O que mais me fere e dói não é a dor mas sua ausência assassina pendurada nos cabides da alma. Quando nasci, já estava maduro, e perdi o ciso na primeira dentição, e o cordão umbilical no bico de um galo cego lá pras bandas de um meio de século.

Outra coisa que muito dói não é tua ausência mas tua presença estando longe. Esse fogo de monturo em mim é que comprova que se não me queimo, não posso iluminar, se não te firo, não extraio de ti o coração. Quando procuro no bolso um poema, sempre encontro aberta uma artéria. Continuo, no entanto, revirando as coisas para desvendar seus mistérios. É nesse revirar, nesse desmontar do que está por aí, que termino por encontrar o verdadeiro sol que habita em cada coisa.



07/10/2008






 

53 visualizações1 comentário

Posts recentes

Ver tudo

1 comentario


greciannycarvalho
11 ene 2022

Belíssimo texto

Me gusta
bottom of page