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  • Foto do escritorBatista de Lima

O sofá vermelho

Batista de Lima



Ele estava esquecido no meio fio da avenida. Uma chaga enorme chamava a atenção por estar instalada na parte mais central e visível de sua anatomia. Parecia ser um simples sofá, mas não era. Principalmente pela conversa que tivemos. Foi quase um dia todo que durou esse velório antes que chegasse o carro fúnebre e o levasse para o aterro sanitário. Era um condenado que revelava sua inocência diante do tacão da morte anunciada. No carro do lixo seria estraçalhado e definitivamente triturado.

Ele que tivera tanta glória estava ali no abandono. Apenas moscas solidárias e formigas inquietas lhe festejavam as partes. Um cão sarnento lhe matou a sede com sua urina amarela e morna. Nada mais lhe avistava. Os transeuntes bípedes torciam o nariz ao lhe passar ao lado. Não sabiam eles das mil histórias ali contidas. Impressas nas suas dobras estão conversas e segredos que ficaram gravados. Desde os tempos em que estava na loja, ouviu e viu tudo no seu testemunhar silencioso. Os compradores não observaram os vestígios de pequena mancha que se escondia nas suas vestes.

Ali estava impressa aquela aventura do chefe com a secretária estenógrafa e bilíngue. Era uma sexta-feira em final do dia e o apelo do patrão para a hora extra. Tudo aconteceu ali no sofá, tudo ficou gravado, as palavras, os cochichos, os gemidos e aquela mancha tão apagada, mas tão visível para o pobre abandonado. Na loja, fora sentado, beliscado, virado, e a tudo resistiu no seu silêncio. Foi finalmente vendido a uma madame de uma casa de massagem. Na sua nova morada, na sala de espera, gravou nas suas retinas e nos seus ouvidos de sofá, os mais concupiscentes diálogos, as mais fingidas gentilezas.

A sua cor vermelha, em combinação com o colorido das paredes e dos lábios das moças, era também cor do sangue que um dia ali jorrou por causa de traições. Viu quando o marido traído entrou no recinto e despejou seus tiros contra cliente que usurpara seu lar, levando sua Helena a outra vida bem longe. Serviu de colo para o conquistador ferido nos seus últimos suspiros de vida. Sentiu aquele sangue quente a mergulhar nos seus contornos em nome de uma paixão proibida. Por mais que o limpassem depois, aquela vida mesmo ceifada ainda latejava no seu interior.

Nesse seu último dia de existência, o sofá descobre o sol e delira bêbado de claridade. Ele que permaneceu nas sombras só agora nos seus últimos instantes tem direito a essa luz natural, e se sente completamente feliz. Mas não deixa de recordar sua existência itinerante desde que nasceu ao lado de muitos outros numa maternidade chamada fábrica de estofados lá para as bandas do Sul das terras. Por dias foi trazido para essas terras do Norte, como escravo para passar de casa em casa até aqui chegar.

E é daqui, desta rua ensolarada, que ele avista as árvores felizes de passarinhos. Até parece que eles cantam sua despedida. Não sabem eles que também teve suas manhãs de canto e glória, quando ao ser a madame despejada daquele antro de volúpia e luxo, foi ele doado à filha que brincava de parir crianças. Entre cinco delas havia a menininha Soraia que de boneca e franja se aconchegava em seus contornos. Ali naquele novo reino viu crianças criançando e adultos se encantando. Foi seu tempo de lerdeza e glória.

Essa vivência um dia terminou com a mudança do povo da casa para os longes de diferentes línguas. Fui doado para uma loja de desalojados, onde coisas aposentadas são enfeites de vitrine. Ali ficou exposto ante o sol da manhã que não conseguia segurar. Até que um dia o levaram para uma oficina mecânica, em que clientes esperavam consertos de suas máquinas. Foi ali pisado, salpicado de óleo, queimado de ponta de cigarro. Foi ali servido de balcão de peças velhas e finalmente chagado para sempre. Quando não aguentaram mais sua presença, despejaram-no nesta avenida terminal para sua despedida.

O velho sofá ainda foi revisitado nos seus últimos instantes por um transeunte que lhe queria extrair armações. Queria os pés para vender no ferro velho. Queria a armação de madeira para fazer cerca de quintal. Precisava, no entanto, de ferramentas para extirpar o corpo do velho abandonado. Não queria o sofá vermelho passar pelo acinte de ter suas entranhas mostradas em ambiente público. Era muita humilhação, numa manhã tão clara, ser extirpado aos olhares dos passantes. Não era apenas o corpo a ser dilacerado. Eram histórias que guardara e que seriam violadas para nunca mais alguém decifrá-las. Ele não era um simples sofá, era um monumento de fatos, um itinerário de existência épica.

A musculatura da manhã já estava rígida e o desmontador havia se perdido em descaminhos quando a máquina fatídica deu sinal de necrotério. Era um monstro de ferro e pneu que vinha engolindo lixeiras. O sofá vermelho, viciado em lembranças, concluiu que era chegada a hora de se desfazer de sonhos e se entregar ao ermo. Não teve tempo de dar seu último afago no rosto da manhã e de olhos marejados de orvalho, foi alçado do seu chão por músculos de ferro e ferrugem para ser jogado naquela boca trituradora. Ao sair transposto e transido de desesperança, o velho sofá de vermelho foi ficando pálido ao estalar de seus ossos, e nessa tortura descabida deu para ver no momento da despedida uma haste mais atrevida que sobressaindo-se dos ferros trazia sua ponta encimada por restos de pano em adeus, bandeira do fatal desprezo.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 29/01/13.


 

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