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O Sertão do boi

Batista de Lima




Desde os tempos coloniais que o boi tem sido fundamental para o desenvolvimento do Nordeste. Entre os três ciclos econômicos que marcaram a economia da região, nos seus primeiros tempos - o do ouro, o da cana-de-açúcar e o do couro - foi este último, com suas boiadas nômades, que mais contribuiu para o povoamento do Interior. A cana e o ouro fixaram o homem onde estavam suas fontes. O boi seguiu os rios em busca dos melhores pastos. Atrás do couro foram os vaqueiros, pontilhando as margens dos rios, de povoados que se transformaram nas cidades do interior nordestino.

O sertão foi desbravado pelo boi, que sustentou sua economia através do couro. Navios saíam dos portos litorâneos, carregados de peles para o mercado europeu. A carne não era tão valorizada quanto o couro. Não havia no sertão consumidores suficientes para dar conta da produção de carnes. Só as charqueadas que deram um certo impulso a essa exportação, mas era preciso proximidade do litoral em cidades como as cearenses Aracati e Camocim.

O couro era mais propício ao comércio da época. Ao ser retirado do boi era espichado e depois de seco, transportado em alimárias por caminhos tortuosos até chegar ao litoral.

O boi e o sal tinham dificuldades de encontro. As salinas ficavam distantes do cenário da pecuária. Era o litoral que precisava ir ao sertão, era o sertão que precisava ir ao mar. Por conta disso houve ocasiões em que bois eram mortos apenas para a extração do couro, com o abandono da carne.

Boi e sal eram moedas de troca. Desde os primórdios da história, ao tempo dos escambos, que os produtos mais valorizados eram o sal e boi. É tanto que de sal evoluiu o termo salário, por ter sido esse difícil produto utilizado como paga de trabalho. Da mesma forma, o boi, de tão caro, deu origem ao termo "pecúnia", que é dinheiro, vindo etimologicamente de "pecus" que é gado. Assim surgiu o termo pecuária.

A pecuária tem sido tão marcante no sertão nordestino que toda uma cultura em torno de sua presença tem se formado. É comum se dizer que do boi só se perde o berro.

Mesmo assim há situações em que o berro do boi é sinal de alegria quando das primeiras chuvas, após longo verão, ou quando retorna da pastagem para o repouso nos terreiros. Além disso, os primeiros engenhos do sertão eram movidos por bois mansos que passavam o dia com suas cangas, puxando almanjarras para moer cana e produzir rapaduras. Quando não moviam engenhos, puxavam carros de bois que rangiam pelos caminhos.

Entre o rio Parnaíba e o rio São Francisco desenvolveu-se a civilização do couro. Havia pastos bons e rios nem sempre perenes que serviam de estradas para o deslocamento dos rebanhos em tempo de estiagem. Era comum, nessas situações, rebanhos do Centro Sul cearense se deslocarem pelo Riacho do Sangue, em busca do Piauí e do Maranhão, onde vicejava boa pastagem. Bastava voltarem as chuvas, esse gado era trazido de volta para seu habitat de origem. Há, entretanto, regiões do interior nordestino em que esse fenômeno não ocorre, face a alguns vales férteis como o Cariri cearense.

Sertão, além do clima semiárido, apresenta paragens estéreis por conta das secas. Até a literatura respeita essa definição quando se volta para o interior da nossa região. Para comprovar, basta que se leiam: "O Sertanejo", de José de Alencar; "Vidas Secas", de Graciliano Ramos; "Os Sertões", de Euclides da Cunha; "O Quinze", de Rachel de Queiroz; "A fome", de Rodolfo Teófilo.

Esses livros tratam mais do sertão combusto em que o boi aparece principalmente como um ser exangue. Acontece que nos locais menos castigados pelas estiagens sobreviveram até grandes rebanhos, além, é claro, de pequenos contingentes de reses, configurando uma pecuária familiar.

É que esses pequenos rebanhos, para o fornecimento do leite e da carne para a família, possuíam uma integração maior com as pessoas de casa. Prova disso é que esses poucos animais eram identificados pelo nome, tendo as vacas o privilégio de levar nomes afetivos. Eram fêmeas que morriam de velhas, ficando apenas os machos para o corte. Nos grandes rebanhos prevalecia o anonimato das reses.

O afeto do sertanejo pelo seu gado fazia com que as secas da região se tornassem mais doridas para o rurícola. É que diante da estiagem era o rebanho quem primeiro sentia as consequências, diante da falta da água e do pasto. Secas como a de 1877 a 1879 dizimaram a pecuária da região.

Foi então por conta desse fenômeno que o ciclo do couro perdeu sua força. A carne do Ceará, a carne do sol, a carne do sertão, a carne salgada, a carne seca e o charque ficaram mais como marcas de uma época áurea para nossa economia.

Afinal, nos dias de hoje, com a disseminação dos frigoríficos, a facilidade de importação, e a construção de grandes açudes na região, bem como a escavação de poços profundos e a instalação da energia elétrica, o boi deixou de andar, a carne anda por ele.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 17/05/2016.


 



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