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O sertão de Gentil Barreira

Batista de Lima


O Sertão de Gentil Barreira é binário; ora verde, ora seco. Coração, Sertão. Mão dupla. Ida e vinda de caçador de imagens. Seu Sertão está no coração, está em toda parte. Sua máquina fotográfica é uma corda do coração. Ela liga a subjetividade à objetividade. As lentes que captam as árvores ressequidas trazem também sinestesicamente o choro sem lágrimas pelas folhas que se foram, pelos frutos abortados. De súbito, no entanto, a chuva chega cheirosa, enchendo as bribocas, cáries do chão combusto, e o verde brota milagroso. O Sertão não é apenas graveto, oferta também folhas, flores e frutos.

As fotografias de Gentil Barreira, para falarem ainda mais alto, uniram-se a textos de consagrados autores cearenses que falaram de seca e de inverno. Foi assim que surgiu o projeto do grandioso livro com o título "Coração Sertão". São 223 páginas, da Terra da Luz Editorial, concretizadas em 2014. O projeto teve a coordenação de Patrícia Veloso, e a organização de textos de Ângela Barros Leal, Gylmar Chaves e este escriba. Muita gente mais colaborou no Projeto, inclusive dois alunos bolsistas do Curso de Letras da UECE, que trabalharam na garimpagem dos melhores textos da Literatura Cearense sobre o assunto. Foram eles: Ana Cláudia Bastos e Sávio Alencar.

No primeiro texto de apresentação, Ângela Barros Leal acentua a dicotomia que se estabelece entre a paisagem seca e o verde brotado depois da chuva. No momento de transição entre as duas paisagens é onde vigora mais forte a proposta desse documentário. É, entretanto, enfática sua descrição da consequência da estiagem. A tessitura das cercas de varas se torna similar à composição textual em que palavras se dão as mãos numa sintaxe lacrimosa. A cerca é o destino das varas como cadáveres em profusão de uma tragédia desertificante. Esse vocabulário muito diferencia-se do palavreado do tempo chuvoso.

O texto seguinte, de Eleuda de Carvalho, ainda na abertura do livro, traz um panorama do Ceará pintado com palavras certeiras de quem mitigou esperanças entre secas e invernos. Segundo ela, Antônio Conselheiro era afilhado de Marica Lessa, senhora rica de Quixeramobim, que mandou matar o marido, e cujo incidente inspirou Oliveira Paiva ao escrever "Dona Guidinha do Poço". O Sertão cresce nas palavras de Eleuda de Carvalho, torna-se móvel, avança pela cidade e se alegra quando fica bonito para chover. Ela mitifica aqueles homens que sabem quando a chuva vem, quando o inverno começa.

Após as apresentações, vêm os textos de famosos autores cearenses, casados com as fotos de Gentil Barreira. Começa com José de Alencar, com passagem de "O sertanejo", seguido de Rachel de Queiroz e Leonardo Mota. É então que Patativa do Assaré pede licença e entoa sua festa da natureza, mostrando poeticamente a chegada das chuvas e o milagre da terra se tornando verde. Antônio Sales e Natércia Campos continuam essa festa líquida para ressurreição da vida, através do verde que enfeitiça os campos.

Para ilustrar o texto de Gustavo Barroso, roncando nas suas frases cachoeirantes, Gentil Barreira fotografa uma casinha sonolenta, numa paisagem erma em que nuvens pesadas escurecem a tarde e ameaçam chuvas. Esse mesmo tempo fechado, Oliveira Paiva vai rastrear lá nos sertões do Quixeramobim, em que Dona Guidinha reina na escrita. Ainda tem Herman Lima que, todo Tigipió, alaga o texto de águas benfazejas e nuvens plúvias. Toda essa festa com seus signos em piracema é interrompida quando a seca surge.

Com a chegada da seca, as águas vão embora e Gentil Barreira vai testemunhar a catástrofe iminente. O chão racha, o calor aumenta, tudo fica árido. É então convocado o poeta Francisco Carvalho para captar a aridez do "galope das nuvens degoladas" e o "tropel dos escorpiões bailarinos". O fotógrafo esculpe de sua maneira uma árvore que a paisagem lhe oferece nos estertores das raízes. É aí que aparece Rodolfo Teófilo para, com apenas um pedaço de "A fome", mostrar o suplício de 1877 a 1879 em pratos de raízes espinhentas de mucunã.

Ainda são convidados Adolfo Caminha, João Clímaco Bezerra, Domingos Olímpio para darem testemunho da tragédia. E para reforçar, Demócrito Rocha mostra o Ceará sangrando pelo Vale do Jaguaribe e Jáder de Carvalho tentando entender porque é tão bárbara essa terra e tão valente esse povo que resiste. Essa viagem poderia ir mais longe mas falta água na cabaça, a farinha está muito seca e o sol é cada vez mais quente. Não há folha verde alguma, não há sombra, só o estorrico, os espinhos e as pedras, mas não morre a esperança de que dia menos dia esse tempo vai mudar.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 02/06/15.


 

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