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  • Foto do escritorBatista de Lima

O ser dicotômico

Batista de Lima



Logo que tomei consciência de ser, vi que nada era uno. Havia dia e noite, manhã e tarde, menino e menina, lua e luar, olho e olhar. Vi que havia principalmente claro e escuro e que as primeiras rezas me diziam que havia corpo e havia alma. Isso foi a princípio o que mais me intrigou. Não o fato de querer ser apenas corpo ou apenas alma, mas saber onde os dois se cruzavam para a instalação do eu. Algumas outras coisas, no entanto, desviaram essa atenção, como o caso do sertão e da cidade, do matuto e do praciano, do profano e do sagrado, de Deus e do diabo, sempre Deus maiúsculo e o diabo minúsculo. Essas dicotomias iam me forçando a fazer escolhas, criando uma obrigação de tomar partido, fazer uma opção. Entre fomes e fastios uns tempos se foram, outros ficaram. Dos que se foram, muitos aqui se fincaram, como essas heranças de ser, esse jeito esquisito de cavalgar as dúvidas e de procurar na entrecasca das coisas o suprassumo das certezas. Foram tempos de nuvens raras e de caminhos sem muitos atalhos mas todos tendo ao lado da ida, a possibilidade da volta. Nessa troca de passos de se mover, sempre havia um braço indo e outro voltando. Sempre na superfície da água, começava o fundo do poço; sempre na forma, o fundo aparecia. Na flor da planta, um fruto se instalava, e na folhagem da árvore era a raiz que mostrava a cara. Nunca nada era só, neste mundo de duplas, pares, casais, parelhas e juntas. Certas coisas feriam os olhos com umas partes, outras partes feriam o pensamento e assim fui guardando o mundo para uma precisão maior. De um fruto pula semente querendo ser planta. De uma coisa que não se sabe o nome salta um grito querendo ser verbo. Palavra é enxoval de objeto, movimento do que não se move. Palavra foi a maior fantasia que já se inventou. Ela vem, às vezes com roupa de anjo para traduzir demônio. Vem de capa encobrindo dores e desejos, feito aquela superfície de água que encobre os mistérios da profundeza. Cada palavra me trouxe um assombro ou uma certeza, até o corpo e a alma que o catecismo me ensinou. Esse novo catecismo da maioridade veio com o nome de gramática e tudo na vida virou regra. Era preciso admitir que, feito pessoa, a palavra também tinha corpo e tinha alma, conteúdo e forma, manhã e tarde, sonho e vigília. Vi muito cedo que palavra era recadeira de coisa. Quando a coisa não me vinha, mandava sua palavra representante. Depois me disseram que ela também tinha corpo e tinha alma. Que eu chamasse de forma e conteúdo para não chocar o criador. Outros me aconselharam a mudar para significante e significado aquela maneira de encarar palavra como se pessoa fosse. Era como se esse mundão todo, feito o açude de pé de serra, tivesse uma parte visível e outra bem maior, mas invisível. Como se aquilo que eu visse, fosse tão pequeno diante do que eu não vi. O jeito foi tentar entrar nesse mundo escondido como um mergulho em águas desconhecidas. Descobri toda uma estrutura profunda por trás daquela estrutura de superfície, todo um mundo interior com um farol exterior. Até a casa de moradia feito uma palavra de alvenaria tinha um lá dentro e um lá fora. Havia suspensos nos armadores, um oh! De casa e um oh! de fora, um estranho e um conhecido, um alpendre e uma cozinha. Depois fui vendo que todos esses duplos têm um ponto de encontro. Foi assim que tentando unir o passado ao futuro, de repente nasceu o presente que é filho da conjunção dos dois. Assim, vivo postado nesse terceiro que não é o primeiro nem o segundo mas o somatório dos dois. Quando o ser mandou seu nome não achei do meu agrado, aí inventei outro nome para a coisa representar. Depois me disseram ser esse um costume perigoso mas que as coisas só acontecem quando o perigo ronda. A essa nova face de cada coisa deram o nome de metáfora. Ela é um vazio que a gente cria dentro de algo que já está cheio. Isso prova que nada está completamente cheio nem completamente vazio. Meu avô sempre dizia que todo caminho de ida tem que ser a preparação do caminho de volta. Que o único porto da certeza é aquele de onde se partiu. Aquele para onde vamos é uma construção que a caminhada produz. O passo que se alça sobre o abismo confia no que se fixa no rochedo. Ou como deduzir com o tempo: temos que ter sempre um pé na metáfora, outro na metonímia; um pé no sintagma, outro no paradigma, uma casa de tijolos e outra feita de sonhos, uma feita com transpiração, outra filha da inspiração. É preciso se levar no peito essa cantiga insistente de uma voz que nos diz sim e de outra que só diz não. Se possível for, colocar sempre as esperanças à frente e atrás os desenganos. Neste mundo dicotômico, entre anjos e demônios, que aquele que me guarda seja anjo de oitiva que me guarde nas planícies e me proteja nas quebradas. Quando ser fica difícil me enclausuro no estar, feito correnteza que se move em solo de muita pedra. Mas quando o solo é propício, me torno lençol freático pois debaixo de muitos palmos a substância trafega. Quanto mais me aprofundo nessas coisas subsolas vou encontrando camadas de gentes que um dia fui. Minha mãe e os cafunés nessa camada primeira, meus avós e um tempo gris, num pavimento seguinte, bisavós e outros tempos em camadas que só conheço porque também estou por lá. O ser dicotômico tem um olho no céu e outro no inferno, o que torna a vida um verdadeiro purgatório. Tem um passo que oscila na dúvida entre o ir e o ficar. Tem uma verdadeira batalha interna entre razão e emoção. A emoção manda correr no escuro e pular de ponta em águas turvas. A razão amarra os pés, algema os braços quando a claridade se turva. Entre as duas a vida se crispa, o sono demora, e uma turbação se apodera da alma. Por falar em turbar-se, há, diante de tanta indecisão, um pedestal onde se ergue a construção da timidez. Esse medo de avançar pode ser o começo do recuar. Quanto mais opções de escolha mais dificuldade de decisão por um só caminho. Por isso que o ir em frente pela estrada reta e larga não prescinde da tentação desses cãezinhos chamados atalhos. Como os atalhos são tentadores! Eles estão ali com suas curvas, coxilhas e surpresas outras que atraem o espírito aventureiro de cada um. É deles que pode fruir a grande verdade, mas também pode vir dali a grande mentira. Fica no entanto em cada um que tentou, o fato de ter tentado. Com vitória ou com derrota, o importante é não marasmar. Agora que ainda latejo na carne trêmula do mundo vou pactuar com o instante, tentando acorrentar esse vilão que descobri que se chama tempo. Essa correnteza sem cabresto, esse despencar que se abisma vem me pondo a mentar que enquanto esse grande mar bem á frente se ergue, o navegar é preciso.

 

20/05/2008.

 

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