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  • Foto do escritorBatista de Lima

O retrato


Batista de Lima



Nasci no mesmo ano em que nasceu "O Aleph", de Borges. Logo em seguida Canlima fugiu para São Paulo, só voltando 10 anos depois, com alguns relógios parados. Trouxe também latas de marmelada e pessegada. Não chiava na fala, nem gostava de futebol. Nunca casou, mas tinha mulheres. De minha parte, sou José. Já ele era Francisco, que vinha montado no Cândido de Lima. Daí o nome Canlima. Foi quem me ensinou a pescar. Não se pode esquecer nunca quem nos ensinou a pescar. Pesca de anzol, que é pesca limpa. Quando se puxa o peixe da água, ele se banha antes. Meu pai me ensinou a pescar de tarrafa e landuá que é uma pesca na lama, pesca suja.

Ao chegar de São Paulo, Canlima, que era irmão de minha mãe, trouxe um retrato de um banquete de que participara. Esse retrato foi posto em moldura e fixado na parede da sala da frente, na casa grande de meu avô. Era uma porção de homens de terno numa lauta refeição. Todos sentados em torno de uma grande mesa. É bom saber que todos estavam sentados, porque depois de sua volta, na casa do pai, Canlima só comia em pé. Ele ensinou meu irmão Pedro a fazer refeições em pé e conversando. Gastava tempos com o prato na mão e jogando conversas fora. Talvez por isso que fosse magro. Pouco se sentava.

Ele dizia que o homem não deve se sentar. Deve ficar sempre em pé ou deitado. Dizia que o homem quando se senta começa a chocar sua potência. Ele tinha uma atividade sexual muito grande. Por isso tinha muitas mulheres. Ensinava para nós garotos a arte da conquista. Ensinou-nos também a arte de jogar biriba, mas não nos ensinou a trapacear no jogo. Só ele sabia. Enquanto distribuía as cartas do baralho, mantinha o cigarro no canto esquecido da boca. Depois dava as notícias da política. Ele as captava dos noticiários do rádio.

Canlima sabia tudo de política, mas não sabia tirar leite das vacas. Algumas vezes trabalhou na roça, o bastante para adquirir um câncer de pele. Morreu dele, comido pelo pescoço. Mas ficou o retrato. Meus avós também morreram, mas a casa ficou em pé, com seus cinco quartos, duas salas, uma cozinha e quatro lances de calçada. "O Aleph" também ficou, já em inumeráveis edições e em variadas línguas. Também ficou o retrato de Borges, por trás de uma árvore seca, a cara do meu avô. Também, toda velhice é parecida, toda infância é parecida. Toda árvore seca é parecida. No retrato do banquete há um cidadão chamado Roberto Santos Cunha, e está parecido com Borges.

Assim como Borges enfrentou a cegueira, Canlima enfrentou a morte com galhardia. Era como se fosse sua última amante, a definitiva. Por isso a amou mais do que às outras. Dançou sozinho no dia em que ela chegou. E quando um sobrinho lhe oferecera ajuda ele pediu o caixão de presente, para o enterro. E o caixão ficou lá exposto ao lado de sua rede, esperando com ele a chegada da querida morte. Sua vida fora singela, sem ambição, tendo como riqueza, manhãs de pássaros, tardes de sol e noites de sonhos. Canlima era um homem poderoso. Tinha o rico poder de conhecer o efêmero da vida e a sagração da morte. Deixou como fortuna o retrato do banquete, a cara do Borges, e uma "tripa" de terra, de herança do pai, que os passarinhos cultivam até hoje.

Canlima não tinha vaidade. Prova disso é que no retrato da parede ele está de costas, aparecendo apenas um pouco do rosto. Além do retrato, deixou uma fortuna de histórias que viveu quando ficou fora. São histórias que não podem ter acontecido, assim como as histórias de Borges, mas porque foram contadas, passaram a ter acontecido. Além disso ele era um homem atravessado por rimas. Para tudo que dizia ou ouvia, arranjava uma rima. Era um poeta em todas as horas. Tinha dois motes prediletos: "Faz pena a mulher nascer, ficar velha e se acabar"; "É duro pensar nela sem ela pensar na gente". Por isso é que dizem que no dia em que morreu, choveu miúdo e musical. Eram pingos sonoros no telhado das casas.

No seu velório, aquelas mulheres que ele visitava em momentos de ternura, não lhe vieram carpir. Mas naquela casa deserta, as horas sonolentas velam os antigos passos de Canlima que um dia viveu ali sozinho. Canlima viveu e sonhou. Sonhou para sobreviver, e tanto viveu que continua vivo naquele retrato intocável. Só não sei por que fui nascer no mesmo ano em que "O Aleph" também nasceu, e o que tem a ver tudo isso com aquele retrato. Só depois descobri, e já tarde, que as histórias de Canlima traziam o fantástico de Borges. Eram histórias que traziam imagens tumultuadas.

"O Aleph" traz escrito: "Vi a circulação de meu sangue, sangue escuro, vi a engrenagem do amor e a transformação da morte (?) vi meu rosto e minhas visceras..." É assim que Canlima também se via. Ele e Borges conseguiam sonhar sonhando, o que é raro. Ambos sentiam uma saudade do mundo, diferente da que nós outros sentimos. O mundo de que tinham saudade era o mundo que eles fundavam para si e não esse que vivemos e curtimos no cotidiano. Meu tio era tangido por versos e sua fala tinha mistérios que o tornaram inesquecível, assim como Borges cujos mistérios transfiguram-se no sobrenatural, no divino e no maravilhoso.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 02/08/2016.


 

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