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O retorno de Moacir

Batista de Lima




Ele partira no 58. Ano seco, a esperança havia morrido em abril. Nada de chuva, o sol tostou a plantação. Aos dezoito anos, ele e os amigos atinaram em direção ao Planalto Central. Iam construir uma cidade a que não teriam direito, mas foram. Partiram naquele triste domingo de agosto. Era o dia de feira da Vila, arremedo de feira. Um bode magro berrava amarrado numa forquilha, seria a única criação a ser morta naquela que já fora feira de meia dúzia de bois mortos e vendidos em qualquer domingo. Agora, entretanto, era emergência.

O salário de fome, que o Dnocs pagaria, era humilhação. E era para poucos, para parentes e amigos do Prefeito, escondido lá na sede do Município. A solução era partir no caminhão de Zé Mandinga já todo preparado para a grande viagem. Uma lona foi colocada por sobre a carroceria e uns bancos de madeira, que o encarregado da capela emprestou, formariam aquele leviatã fazedor de poeira na busca do Goiás.

O problema era deixar para trás a mãe viúva, já um caquinho de gente, Margarida, o amor das serenatas, e o cachorro "rompe ferro", caçador de tatu e companheiro de brincadeiras de todas as horas.

Chegou ao Planalto e vestiu-se de cimento e ferro. Era a construção de Brasília. Vez por outra o Presidente Bossa Nova aparecia por lá e era festa. Um dia apertou-lhe a mão. Nos demais dias, sufoco. Arranjou amigos de muitos estados, inclusive um gaúcho falante, que partilhava um carro de mão e um andaime com ele. Mas um dia o andaime arriou e o gaúcho se foi, deixando mulher e dois filhos. Eram amigos e o branquela era um dos poucos que levara mulher e filhos. Começou a cuidar da mulher e das gorduras dela e com pouco estavam dormindo no mesmo quarto. Não tiveram filhos e formaram os do pai que se fora. Depois de anos a gorda morreu, e ele, viúvo.

Viúvo sem ter casado com o aposento de um mínimo e já pesado de anos, resolveu voltar. Quarenta anos haviam se passado. A volta de ônibus, ar condicionado, a estrada estava asfaltada. Era tudo mudado até chegar no lugarzinho dantanho, todo salpicado de antenas, cidadezinha desalentada.

Era preciso começar nova vida, podia até botar uma rocinha na tripinha de terra que os pais haviam deixado. Lembrou-se do cachorro, da mãe que já se fora e então chegou a Margarida, quando viu a pracinha mirrada.

Ali ocorrera o primeiro beijo, certo dia, logo que a luz do motor apagara. Ali na festa do padroeiro botou mensagem com o nome dela e música de Emilinha. Informaram que Margarida enviuvara logo depois de casada, e sem filhos. Morava só, numa casinha no fim da rua. Criava galinhas, vendia ovos e pães-de-ló.

Na tarde seguinte estava Moacir batendo palmas de curiosidade na casa do seu antigo amor. Ela saiu. Não se reconheceram. A meia porta testemunhou a surpresa dela, quando ele se identificou. Ela recuou e tangeu um galo que a acompanhara. Sem palavras, abriu a porta e convidou-o a entrar. Ele de óculos, ela de vestido com manchas. O galo voltou para os fundos da casa. Um carro passou pela rua.

Olharam-se em silêncio. Ela cobriu a mola exibida do velho sofá com uma almofada encardida. Ele escondeu os pés por baixo da cadeira. Os sapatos estavam furados. O galo veio lá de dentro, olhou e voltou. Havia um retrato na parede. Era de "rompe ferro". Ele reconhecera. Lembrou-se do dia da viagem. Ele correra atrás do caminhão na poeira da estrada, até cansar. Ele vertera uma lágrima.

Ela contou que com a morte da mãe dele, ela trouxe o cachorro para casa e cuidou dele, até à morte, e mandou fotografá-lo. Ele agradeceu. Silenciaram de novo. Um gato veio à sala e pulou no colo dela. O vestido subiu um pouco e o joelho apareceu. Só osso. Ele tentou esconder as mãos. Só dedos e rugas.

Começou uma pequena neblina lá fora. Chiou no telhado e pingou no soalho. Goteira de telha quebrada. Ele ofereceu-se para consertar. Entraram em busca da escada no quintal. O galo acompanhou. Com pouco estava ele no telhado, tapando o buraco e outros que apareceram. Ela aproveitou e trocou de vestido. Ele desceu suado e sujo. Ela ofereceu toalha e sabonete para o banho. Ele limpou-se no banheiro, ela perfumou-se um pouco no quarto.

Olharam-se com profunda ternura. Ela ofereceu almoço, ele agradeceu, poderia ser outro dia. Marcaram para o dia seguinte. Ela mataria um capão do quintal, ele traria uma cerveja. Ele se foi. Ela ficou olhando pela porta. Ele olhou para trás.

Dia seguinte, estava ele de volta, óculos escuros. Ela penteada e de vestido limpo. A casa cheirava. A carne do capão chegava ao nariz antes de chegar à mesa. Almoçaram com cerveja e sobremesa de chouriço. Ela armou uma rede na sala, ele aceitou. Ela guardou o retrato do falecido no baú do quarto, depois de fechar a porta e se deitar na cama.

Acordaram no meio da tarde, café com pão-de-ló. Ele contava as galinhas, ela lavava os pratos, o galo recolheu-se. A chuva voltou forte, eles entraram pela noite. Recordações não faltaram. Chuva no telhado, canja de galinha no jantar. A noite molhada, enchente. Ela armou a rede no mesmo lugar. Ele deitou-se mas não dormiu. Ela recolheu-se ao quarto e deixou a porta aberta. O galo cantou fora de hora.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 19/12/2017.


 

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