top of page
  • Foto do escritorBatista de Lima

O retorno de Macário

Batista de Lima


As noites escondem os pecados do dia. Até o sol faz feriado para que densas sombras encubram o que não se pode clarear. Os cães uivam e o vento balança as árvores para acordar os fantasmas que precisam participar do fúnebre festim. As eras se descobrem e os dias idos se tornam vindos. Foi assim que Macário encontrou suas antigas raízes. Depois de trinta anos nas lonjuras do Sul ele voltou para recompor no presente, um passado que fora em vão. Procurou pelos antigos seus e encontrou cruzes de boas vindas. Daí começou a querer reformar o que forma não tinha mais.

Procurou nos baús abandonados, velhas vestes ali deixadas para o festejo das traças. Vestiu-se com as antigas roupas que o pai vestira. Eram vestes que as eras puíram, lençóis que embalaram sonhos e traziam impressas as digitais dos tempos fartos. Eram terrinas roucas de vazios gritantes. Macário dissolveu-se em lágrimas carpidando ausências. Era preciso acordar pessoas, recompor rebanhos, ordenhar vacas ancestrais, requeijar as manhãs dos finais das chuvas. Era preciso acordar das sombras os que nas sombras se esconderam. Escavar era necessário, nos confins da noite, a multidão escondida.

Macário trocou o dia pela noite. Começou a viver os labirintos da escuridão. Durante o dia dormia para vasculhar nos sonhos o que a claridade sonegava. Dormia de dia, trabalhava à noite. Vasculhava no cemitério, as vozes que o tempo silenciara. Ouviu o pai gritando ordens, ouviu a mãe gemendo rezas. Os antigos bois, pulando cercas, davam marradas nos desvãos dos pastos. O oco de tudo precisava ser preenchido. Daí sua corrida noturna por caminhos antigos com aqueles seres que só à noite emergiam dos esquecimentos. Até uma avó que não conhecera veio lhe fazer companhia.

Macário corria à noite caminhos que o dia escondia. Entrava na treva do velho engenho e botava bois nas almanjarras. Seu aboio estrugia como trovões que as nuvens não retêm. Das casas próximas os ouvidos se tapavam desouvindo o que já se fora.

Sua fama de louco correu de porta em porta e já ninguém lhe desejava boa noite. As cancelas batiam acordando os galos e nas encruzilhadas as antigas cruzes se benziam de medo. Foi assim que uma embaixada de vizinhos lhe fez visita amistosa na busca de menos medo nas noites de assombrações e nos dias de encantamento.

Era comum encontrar-se com Macário correndo desesperado nas noites escuras para se livrar das chicotadas de seu pai, há muito falecido. Depois rodopiava gemendo dos cocorotes desferidos por sua mãe, há vinte anos sepultada. Só ele via essas pessoas partidas, e a noite é que trazia à tona essas personas das suas lembranças. Deu para banhar-se vestido no açude para que antigas lavadeiras não vissem sua nudez. Ele tirava leite de vacas da infância. Fazia doce de leite em cacos ancestrais e pela janela da casa pedia a bênção a sua tia mais velha.

As esquisitices de Macário tomaram corpo em Sipaúbas com fama de assombração. A sua visita noturna ao povoado fazia o sino tocar, os cachorros latirem e a noite trevar mais negra. Era um vampiro, um lobisomem, a besta fera. Padre Inácio prontificou-se a fazer o exorcismo nessa criatura temida. Afinal, esquinas estavam cheias de presenças suas, nos grotões seus gritos ecoavam. O pior era que, com sua presença, as vacas perdiam a cria. As mulheres quebravam resguardos e os homens se muniam de armas. As casas se travavam em trancas, com cruzes nos frontispícios.

Macário não estava de todo satisfeito. As vozes que ouvia não eram tão fortes quanto seu desejo. Queria estridências, trovejar de palavras. Por isso concluiu que essas falas vinham de cima, do firmamento e não de baixo, dos cemitérios. Mudou-se do campo santo para os telhados. Dos telhados mudou-se para os morros. Dos morros pulou para as árvores. Foi nas grandes árvores em que encontrou maior proximidade das coisas do além. Aboletou-se numa enorme aroeira nascida e criada no cume da serra mais alta.

Foi dali, do alto da árvore, abençoado pela mãe, festejado pelo pai, por seu retorno de pródigo. Da copa da grande aroeira estirava a mão para o alto e tocava nas crinas das nuvens, dizendo serem as vestes de Deus. Conversou horas com Nossa Senhora, presenteou São Sebastião, seu protetor, com um saco de mangas, serviu de guia para Santa Luzia e se apaixonou pela beleza de Santa Margarida Maria. Ali do alto da árvore cantou benditos e entoou loas aos anjos e querubins. Chegou a fumar alguns cigarros de fumo com São Pedro e discutiu retórica com São Paulo.

Macário ficou divino naquela casa de ramos e folhas. Ali fez uma latada onde dormia com os pássaros e acordava com os galos. Viu chuvas com trovoadas, disputou no grito o ronco com os trovões. Daquelas alturas ouvia gritos de quem estava embaixo e apelos de quem estava em cima. Sentiu dali que quanto mais alto estivesse, mais perto ficaria dos que não encontrou no seu retorno final. Pensou se devia descer para o mundo dos esquecidos ou subir para o mundo das lembranças. Foi assim que à meia noite da quarta-feira de cinzas do ano da graça do não importa quando, lançou-se em busca dos seus, indo sua alma em direção ao céu e seu corpo despedaçando-se nas pedras do áspero chão.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 18/09/12.

 

3 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

留言


bottom of page