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  • Foto do escritorBatista de Lima

O retorno das águas

Batista de Lima


Nunca imaginei que as águas que por aqui passaram, um dia retornassem. Parece supremo o desejo de quem faz um rio retornar às cabeceiras. Será que são lágrimas caudalosas da grande saudade do mundo? O mais crucial disso tudo são os balseiros que as águas devolvem aos seus antigos verdes. São as pessoas que voltam mastigadas pela correnteza do rio do tempo. Nada volta como foi, e é isso que dói nesse reencontro. Quando a multidão aqui chegou, nada mais era do que tinha sido. Até eu me desconheci quando me encontrei. Desconheci-me porque me procurei em cada um que revi.

Enquanto minhas tias teciam redes, com fios de algodão, eu compunha brinquedos verbais com mais vogais que consoantes. Por isso que no retorno dessas águas, quero pescar algumas vantagens que ainda boiam no desconcerto que o tempo ousou de cometer. Essas águas no entanto não conseguem me devolver o engenho com seu fogo, a mocinha sorridente do sabonete Eucalol e o Hino Nacional nas costas do caderno Avante. Mesmo assim chegam de volta os dedos de meu avô, perdidos num bolinete, a dança de rosto colado com laquê e brilhantina, a luz negra que azulava os dentes da moça triste, que só conseguia sorrir nas tertúlias do domingo. Chegam também de mansinho alguns suspiros escapados das noites do novenário da festa do padroeiro com foguetório e quermesse.

Nesse retorno, chega Gerôncio contando dores que o tempo lhe desferiu. Pescador sem sua tarrafa, apenas resta o cheiro forte de seu pescado, exalando de suas palavras. Ser pobre fedendo a peixe não é apenas sua dor maior, mas ter que ver todos os dias aquelas gaiolas tipo senzalas prendendo peixes em cativeiro não é mais suportável. Depois chega Juvenal que não conhecia o mal. Nas serenatas, seu sorriso antecipava a alvorada. Sua voz ao violão derretia moças que se esvaíam líquidas por janelas e portas do casarão. Juvenal que agora veio, esqueceu os dentes em alguma esquina e perdeu o olho de olhar a lua.

No meio dessas chegadas, o ronco de um aluvião, o grito de um gavião, é um terremoto roncoso que se joga entre nós no corpo de Aroldo Jungueira. Não é um homem, é um turbo. Não é um corpo, é um terno, um tronco, um tranco e a felicidade em borbulhas. Chegou, pulou e gritou, mas ninguém viu quando partiu e esqueceu a dentadura na pia do banheiro. Quem também esqueceu fortuna foi a filha do padeiro que voltou sem trazer seus antigos e empinados seios. Tudo nela deixou pedaços pelas margens desse rio que não cansa de voltar do mar.

Enquanto isso meu pai ia pescando peixes no açude enquanto eu me ocupava em pescar os açudes que vinham nos peixes. Ele também tirava leite das vacas enquanto eu procurava salvar as vacas que vinham no leite. Pois quando minha mãe fervia o leite na panela, eu chorava a sorte das vacas que se queimavam na fervura. Quando minha mãe tinha filhos, eu esperava que o pote também parisse potinhos. Quando a chuva chegava com pingos que pareciam fios de água, cabelos da cabeleira das nuvens, eu me punha procurando pentes para a penteação. Muitas águas de abril quando chegam de retorno costumam esquecer relâmpagos e desouvir trovões. É o inverno tentando dizer que está chegando ao fim, por isso que muitas outras estações se revezam no carpir.

Nesse retorno de águas, sábio é o mar, por ser uma grande boca que mastiga e cospe tudo aquilo que engole e manda o rio levar de volta. É tanto que até a estátua do santo padroeiro veio também de arribada, faltando uma das setas que varou seu coração. Nesse retorno das águas, veio um relâmpago esculpido que um dia antecipou um trovão que não troveja mais. Veio um pescoço encurtado de um menino sonhador que carregava cadeiras na cabeça, portando a tabuada e a carta de ABC, para a escolinha que chegou boiando. Veio uma casa caiada, onde morava a letra "i", para onde eu remetia minhas cartinhas fechadas.

Essas águas, que retornam, podiam passar direto em busca de outras paradas, mas têm que parar por aqui para desfazer as malas com aquilo que um dia levou. Deixou aqui um poeta chamado Eudes, um caminhão da Ford que se recusava subir ladeiras, sete irmãs que não mais voltaram de uma mãe que vestiu sete lutos, e uma segunda-feira, primeira do mês de agosto, constipada de presságios. Também trouxe de volta Sebasto e sua sanfona fanhosa, e um violão que só tocava a "Marcha dos marinheiros", mas que perdeu suas cordas e os dedos do tocador nessa ousadia da volta.

Esse manancial retornante preenche os açudes de agora mas esquece de trazer consigo os peixes que se foram um dia. Traz um tropeiro sem modos, que se chamava Brejeiro, mas esqueceram as balas que lhe travaram a voz. E o "Oh! De casa" e o "Oh! De fora" voltaram com essas águas, mas de tão desfigurados, passaram direto na estrada e esqueceram de dar "bom dia". Veio também o rebanho, do tempo do engenho a boi, mas só chegaram os nomes dos bois da guia e do coice. Chegou o branco de "navegante", o preto de "rapé", as manchas de "surubim" e o coice de "chuvisco". Dos outros só chegaram os berros, das canas só chegaram as cáries.

Nunca imaginei que por aqui retornassem as águas que passaram um dia. Mas interessante é que a gente pensa que não foi levado por elas, por sua correnteza sem jeito. Só no retorno dos outros é que se nota que também retornamos. E não adianta se compungir com o que se vê se não se nota o que carregamos aos ombros. Assim sendo, vamos juntar esses cacos que retornam. Se emendarmos esses pedaços, é bem possível que ainda se instaure a imitação do que se foi. De resto é pintar essa nova imagem com as cores do sonho. Só assim tem sentido a vida.


jbatista@unifor.br

28/06/11.

 

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