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O professor de geografia

Batista de Lima



Ele só possuía o braço direito. Era, no entanto, o suficiente para transportar pelos corredores do Seminário, o calhamaço de mapas do mundo todo para suas aulas de geografia. Na hora da explicação, aquele braço único se alongava tanto que viajava da Vestfalia à Sibéria, em segundos. Da África do Sul ao Canadá era uma viagem num piscar de olhos. Mas havia uma predileção pela Alemanha, afinal fora lá onde nascera e sofrera as desventuras que lhe marcaram pelo resto da vida. A turma era pequena, com apenas sete alunos, no último ano do ginasial. Brincávamos em todas as aulas, menos nas dele. Se uma cadeira saía do lugar, ou alguém apenas bocejasse, era o suficiente para seu transtorno. O rosto, as mãos e os braços começavam a se crispar, a se pintar de manchas avermelhadas. Os olhos engrandeciam e ele, num ímpeto, colhia os mapas e os livros e saía quase que correndo para se trancar nos seus aposentos. A partir daí, eram quinze dias entocado, feito bicho, e a gente sem aula. Fomos nos acostumando àqueles rompantes até ao final do ano, apesar de não aprendermos muita coisa da Geografia Geral. Livres de suas aulas, fomos pesquisar com muito jeito os motivos daquele inusitado comportamento. Seus conterrâneos religiosos nos forneceram detalhes de sua vida atribulada. Filho de um casal de judeus, escapara do holocausto, escondido dentro de um velho fogão de sua casa. No entanto, assistira, pelo vidro do forno, à prisão da mãe e aos golpes que o pai levara por resistir ao aprisionamento. Naquele momento tinha pouco mais de treze anos e a tudo presenciava a pouco mais de um metro de distância de seus pais. É tanto que órfão e desamparado, terminou por ser acolhido numa casa religiosa e começado seus estudos preparatórios para a vida sacerdotal. Ainda estava no noviciado, logo após o término do conflito mundial, quando iniciou também sua vida de professor, para crianças de oito e dez anos. Estudava e ministrava aulas. A lembrança dos pais, que morreram no campo de concentração, não lhe saía da cabeça. A guerra acabara, mas as cicatrizes eram profundas, indeléveis. Dar aulas era um lenitivo para as dores da saudade dos pais e para o estigma da orfandade. E foi numa dessas aulas onde lhe aconteceu uma outra desventura. Era hora do recreio naquela manhã de aulas. A metade da turma, que ficava no primeiro andar do prédio, havia descido para brincar no pátio que ficava logo embaixo. A outra metade ficara na própria sala, brincando, por causa da melhor calefação naquele tempo de forte frio. Ele ficara na própria mesa do professor, fazendo correções de exercícios executados pelos alunos na aula anterior. Havia o barulho na sala, no pátio e nos arredores da escola porque a cidade ainda estava sendo reconstruída devido à devastação provocada pelos bombardeios sofridos durante o conflito ocorrido. Era pois comum encontrarem-se bombas ainda não detonadas, mas que estavam por ali como um perigo camuflado. Foi por isso que uma das crianças levara na sua bolsa, uma velha granada encontrada quando se dirigia para a escola. Inocentemente o menino tirou o artefato da bolsa e foi mostrar aos colegas que ficaram na sala. O explosivo passava de mão em mão entre um misto de curiosidade e inocência. Em uma dessas mudanças de mão, a bomba desprendeu-se das mãos de um dos meninos e foi ao chão. Essa queda provocou o ativamento da granada que em segundos estaria explodindo. O professor, de sua mesa, ouviu o barulho da granada ativada. Só teve tempo de, num átimo, pular da cadeira para onde estavam as crianças e apanhar o artefato. De inopino, lança-se em direção à janela para atirá-lo fora. Acontece que fatalmente a bomba explodiria entre as crianças no recreio. Eram segundos para tomar uma decisão que não provocasse uma tragédia, afinal muitas crianças morreriam se a explosão fosse na sala, mas muito mais morreriam se fosse lançada a granada no pátio embaixo. O professor notou que a janela que se dividia em duas bandas, era de ferro e de formação muito sólida, como também as grossas paredes. No mesmo afã de resguardar a integridade física dos meninos tomou a decisão salvadora. Com a granada na mão esquerda pôs o braço todo para fora da janela e a fechou o máximo que pôde, abaixando-se protegido pela parede. A granada explodiu, destruindo seu braço, provocando-lhe desmaio e hemorragia. Quando despertou, estava no hospital, sem o braço esquerdo. Verdadeira procissão de pais e autoridades frequentava o hospital para agradecer o ato de heroísmo do professor. Seu gesto o tornou herói. Até o mandatário maior da nação chegou a lhe enviar correspondência de agradecimento e louvor pelo feito. O tratamento durou meses mas a recuperação física não implicou uma reconstituição mental. Ficou ele abalado, tendo pesadelos constantes e marcado para o resto da vida por uma cicatriz muito bem escondida no seu ser. Trataram-no fisicamente, mas esqueceram de tratar seu trauma. Nosso professor de geografia não podia sentir alteração de comportamentos no seu entorno. Suas crises eram constantes e até em um certo momento de missa, isso ocorreu. Com ele aprendemos um pouco da geografia européia, mas não aprendemos a ajudá-lo nos seus momentos de surto. Respeitávamos a falta que o braço esquerdo lhe fazia, mas não respeitávamos uma falta bem maior que ele transportava e que se agazalhava no seu íntimo e que nunca fora tratada como deveria ter sido.

 

14/04/2009.

 

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