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O preconceito linguístico

Batista de Lima



Cícero Martiniano era um trabalhador pardo, quase analfabeto mas pedreiro esmerado. Quando não havia paredes a levantar, ou embuçar, ou caiar, emprestava seu braço aos fazeres do canavial. Falava pausadamente num português arrevesado mas muito comunicativo. Aos quarenta anos era tão positivo no que dizia que meu avô, patrão e bem mais velho, gostava de ouvi-lo por horas a fio. Certa feita, com a presença de alguns políticos doutores em petição de votos lá pelo sítio, todos caíam em louvação ao patrão que era cabo eleitoral de quase cem eleitores. Eram discursos mal feitos e encomiásticos. De repente o homenageado, diante de tantas loas e tanta gente entediada pediu para ouvir a palavra de Cícero Martiniano. O trabalhador veio lá de trás e se pôs ao lado das autoridades e fez seu discurso sem titubear, sem puxar o saco, e dando quinau em toda aquela reca de candidatos interesseiros. Foi uma apoteose de palmas e a partir de então seu Cícero fazia seu discurso em qualquer solenidade, por exigência do público. Soube depois que, se mudando para a região de Piquet Carneiro, tornou-se, nosso orador preferido, um exímio pregador evangélico. Cícero Martiniano é uma exceção na nossa cultura academicista em que as bocas devem falar através dos canudos universitários. Esse preconceito lingüístico é uma praga que medra por este Brasil afora. O discurso do excluído é anulado por uma tradição que tem suas raízes nos tempos coloniais. Só o português colonizador tinha poder de voz. Depois era a geração de doutores moldados na escola de Recife ou no Largo do São Francisco. Isso levava a uma situação em que uma casta privilegiada era falante e o resto era ouvinte, comportamento esse que era reforçado na educação escolar, quando se tratava da relação professor aluno. É preciso se pensar a língua como veículo de emancipação do homem, e que cada indivíduo precisa ser respeitado na sua fala. É através da fala que a pessoa se impõe diante de seu grupo social. É pena que a norma culta, alicerçada na gramática normativa, entrave a fala dos que não lhe tiveram acesso. A gramática normativa é autoritária e cria um abismo entre o falante letrado e o iletrado, entre a linguagem escrita e a falada. Daí que, quanto maior for essa distância entre a escrita e a fala, mais fica visível a desigualdade social existente entre os usuários da língua. Diante disso pode-se dizer que a exigida unidade da língua portuguesa falada no Brasil é uma falácia. O Brasil é continental. Possuidor de muitos falares, é desastrosa essa imposição de currículo único, quando se trata da aprendizagem da língua. Por isso é que há quem propale que brasileiro não sabe português, que só em Portugal fala-se bem a nossa língua. O que acontece é que há diferenças fonéticas entre os falares dos dois países que não implicam um falar melhor ou pior que o outro. Por conta dessas diferenças e de tantas regras da gramática normativa é que há alguns equivocados que proclamam ser o português uma língua muito difícil. Toda língua é fácil para quem nasce tendo-a como língua materna. Desde há muito ouço falar que o Maranhão é o lugar onde melhor se fala o português, no Brasil. Essa é outra bobagem comentada. Segundo Marcos Bagno, no seu livro Preconceito lingüístico: o que é, como se faz, ´não existe nenhuma variedade lingüística nacional, regional ou local que seja intrinsecamente melhor, mais pura, mais bonita, mais correta que outra´. Nessa mesma linha de raciocínio, a pesquisadora Aurilene Xavier de Oliveira afirma que ´é preciso acabar com a idéia de o melhor ou pior português já que urge a necessidade de respeitar todas as variedades da língua que constituem um tesouro precioso de nossa cultura, não esquecendo que é na diversidade, no diferente que nos encontramos, nos deparamos com as riquezas do outro e, assim, melhoramos as relações e transformamos uma realidade´. Assim sendo, não é preciso saber gramática para se falar e escrever a contento. Daí ser um equívoco a exigência de alguns pais de alunos para que a escola ensine gramática a seus filhos. É exatamente o zelo exagerado em torno do aprendizado da gramática que inibe o talento natural do aluno criativo. A insegurança no ato de escrever é geralmente conseqüência do emaranhado de regras que o aluno precisa aprender em nome de um purismo castrador. Quem está em processo de aprendizagem é passivo de erros e acertos. É através dos tombos que se aprende a caminhar. Não devemos ser contra as regras, mas precisamos evitar que tudo seja regrado. A ascensão social é uma ladeira íngreme com degraus nem sempre confiáveis e que precisa ser desvinculada do domínio da norma culta. Tanto é assim, que se existisse esse mito, nós, professores de português, estaríamos nos píncaros da glória intelectual e com as burras fartas do vil metal. Além desses preconceitos citados, outros podem ser notados no seio da vida social. É o caso dos que falam alto, aos gritos, como forma de intimidação dos subordinados. É o caso também das confrarias lingüísticas que se criam em torno de determinados grupos de profissionais como juristas, economistas, publicitários, médicos, etc. Dessa forma pode-se elencar aqui inúmeros preconceitos lingüísticos. E então secundá-los com os inúmeros malefícios que lhe fazem par. Os prejuízos que eles causam ao indivíduo vão desde a diminuição da auto-estima até a exclusão social. Pois da mesma forma que a fala do indivíduo é veículo de sua ascensão social, a interdição dessa fala possui um caminho contrário. O interdito leva à exclusão e essa é seio do autoritarismo. O preconceito lingüístico é uma forma de censura e é a partir dele que podemos transformar o nosso universo em um ambiente assustador.

 

10/06/2008.

 

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