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O poeta da sutura

Batista de Lima


Os livros de poesia, geralmente, se iniciam com os melhores poemas, deixando os mais fracos para o final do volume. No caso de Cândido Rolim, nesse seu novo livro “Sutur”, acontece o contrário, os melhores poemas estão no final. É como a imagem de uma ferida que vai melhorando ao passar do tempo, graças a uma boa sutura que fora operada. Talvez por esse motivo, ou pela catarse operada pelo autor, esse seu novo livro torna-se mais interessante se for lido do final para o começo.

A editora chama-se Texto Território e fica no Rio de Janeiro. O ano é 2018. Com apenas 64 páginas, é difícil não ser ferido pelos seus estilhaços verbais. Esses estilhaços provocam buracos no corpo poemático que Osvaldo Martins chama de vazios e outros teóricos apelidam de metáforas. O que acontece é que o poeta fratura a estrutura de superfície dos seus poemas a tal ponto que o leitor precisa calcular os riscos ao mergulhar na estrutura profunda. Daí que esse livro, tão pequeno de páginas, é tão difícil de digerir. Esse poeta nascido no sítio Medeiros, em Várzea Alegre, no Ceará, armou um fojo para seus leitores.

Seu território de apoio é uma terceira margem que precisa ser construída pelo leitor. Afinal, o poeta constrói apenas um ponto de partida e nos deixa à deriva. Por isso que a leitura precisa ser feita em velocidade controlada. Nunca se sabe o que vem pela frente. Isso acontece porque o poeta, como vigia de si próprio, murmura, num código particular, um lirismo nada namorador. É portanto fácil de se concluir que essa terceira margem se opera na linguagem. É nela que se concentra seu fazer poético, um terreno acidentado em que cuidados são necessários para se transitarem.

Quando o poeta fala de uma “pessoa baleada que pede água”, é porque ninguém lhe oferece “um pedaço líquido de si”. O que há é um coágulo inumano que lhe aprecia o estertor. Enquanto isso, por ser um sábado, “homens acariciam carros”. Daí que uma coisa qualquer grita pedindo nome, com sua fome de ser. Ela não tem gosto nem rosto, é apenas uma coisa que não possui imediações. Sua fala é a mesma que sopra o poeta, murmúrio. Essa poética do murmúrio transfigura-se numa fala que faz do poeta um ser que oscila entre o mistério e a linguagem transgressora. Cândido Rolim dialoga muito consigo e menos com o outro.

O poeta, poucas vezes, nas suas tardes defumadas, incorpora a dor do mundo e deixa-se enlaçar pela memória. É então que Amarildo aparece em um esboço em que a injustiça e a impunidade se entrelaçam para a dor se tornar maior. Paralelo a isso, há o pedido de socorro à metáfora para o dardejar dos algozes. Então, num “vazio preenchido a muque” uma “circunstância catártica de sua brumosa adjetivação” entra em funcionamento para falar de um “glamoroso fastio” através de um “ventriloquismo talmídico”.

Ao final da coletânea, quando o poeta mostra sua “Educação pela perda”, o leitor se lembra do seu poema “Notícia” em que ele afirma: “Soube ontem: a mãe / nos meus sumiços / cobria-se de terra”. Há um pessimismo implícito na sua poesia, um desengano acompanhado de uma grande saudade do mundo. E quando fala, é por uma “boca carcomida de hiatos”, o ouvido cheio de pedaços de assunto, num mundo suportando seu contorno abolido. Assim, pode-se dizer que Cândido Rolim é um poeta de muitas fraturas expostas.


FONTE: Diário do Nordeste - 02/04/19.


 

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