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O poder da Linguagem


Batista de Lima


Quanto mais próximo da beleza me aproximei, mais triste me tornei, porque concluí que tudo que muito tem durado mais próximo está de deixar de durar. Essa loucura, que o efêmero provoca, só consegue algum proveito diante da extrema feiura. O belo no entanto tem seu lado torturante por não concebermos o escombro que por trás dele se esconde. Por isso a importância da permanente reforma de que a linguagem necessita. Essa construção, tão bela, vem montada na possibilidade da feiura. Assim como na vida, é preciso sempre estarmos a postos contra o que há de deletério por trás do ser. Constata-se que o ser não é, o ser está. Por apenas estar, nunca encontrei a palavra perfeita que me levasse a ser. Essa incapacidade é que nos põe diante de uma parede sem porta.

O homem é feito de palavras e escravo delas. Não se liberta porque não há libertação se necessitamos nos alienar a códigos que nos incutiram para que sobrevivamos. As palavras nascem e morrem como os homens, e as coisas acompanham esse trajeto, porque também são feitos verbais. Quando vejo algo desconhecido, dou-lhe um nome e a esse nome me amarro, criando uma dependência mútua. Esse nome, no entanto, não é a realidade, é um símbolo do real. Por isso, o grande momento humano é o ingresso no mundo simbólico. Na infância do homem ocorreu a maior das revoluções, foi a invenção da palavra. Não há, pois, invenção humana que supere a palavra. O homem diferenciou-se dos outros animais e das coisas ao metaforizar a realidade pela palavra.

Quanto mais se modernizam as línguas mais distância aparece entre o nome e a coisa nomeada. Se voltarmos no tempo, vamos descobrir que no princípio havia uma identidade maior entre a coisa e o nome. Os povos indígenas que ainda existem e que nem escrita possuem, falam línguas tão naturais que as palavras são imagens das coisas. São falares motivados, onomatopaicos. Quanto mais o homem tem consciência de si, mais ele se afasta do mundo original, na procura desesperada por um novo mundo, ou nova linguagem, para fins de proteção. A consciência do efêmero faz o homem se artificializar como forma de se proteger, mesmo desprotegendo-se.

O homem possui uma superfície e uma profundidade. A distância entre as duas é tão longa que foi necessária a criação da palavra numa tentativa de encurtar esse caminho. A palavra poética pode enfeitar esse caminho. A arte é uma decoração da distância entre a objetividade da superfície e a subjetividade da profundidade. Acontece que o poço em que mais se abastece essa arte está nessa estrutura profunda. É nela, inclusive em que habita nosso duplo, nossa mais pura figuração. Por isso que a arte é reveladora do que mais reservadamente guardamos.

Quando isso tudo vem à tona é um parto violento que ocorre. Daí que a criação artística é uma violência contra a linguagem. Como fala Barthes, ocorre uma verdadeira "esfoladura" da linguagem quando o poético explode. É muito difícil para o poema, agasalhar a poesia. É muito difícil um código social hospedar uma manifestação individual, um fenômeno tão particular. É muito difícil uma emoção se contentar em enquadrar-se em palavras comuns. Por isso que o poema é uma tentativa, talvez a mais próxima, de resgatar a poesia que retemos como um vulcão que precisa acordar das entranhas do nosso ser.

Tudo isso leva a crer que a psicanálise é quem melhor executa a leitura da poesia mesmo antes de se tornar poema. A psicanálise busca, na fala, a porta de entrada desse grande universo que é a subjetividade do indivíduo. Entenda-se fala, nesse caso, não apenas como a palavra escrita e falada, mas também comportamentos. Fala é a forma particular que cada indivíduo possui de manifestar o que está por trás de sua superfície. Por isso que a terapia é muito realizada com audição e observação do terapeuta para com seu cliente.

A beleza do humor na poética fica por conta da maneira que o artista encontra de enfrentar a ditadura do código. A melhor forma de suportar uma ditadura é gozar dela. Ela tem seu aspecto psicopata e não resiste ao prazer do torturado. Daí que o humor é uma potente arma para se vencerem paradigmas arbitrários. O poeta tem uma posição marginal diante da estrutura social porque não se enquadra na rigidez do que está posto. O que está posto é uma linguagem, e sua função é revoltar-se contra essa linguagem. Da margem ele incendeia a estrutura montada, fazendo seu desmonte particular.

A vantagem do poema sobre os outros gêneros literários é que ele mergulha na infância dos seres. É dessa infância que ele pesca o sabor poético. Quando se tenta manipular um poeta é sua essência que se está atingindo. É sua infância, como fonte, que está sendo destruída. Mesmo assim é no seu povo em que o poeta alça seu voo inicial para navegar nas águas poéticas. Essa relação de pertencimento do poeta ao seu momento histórico, com seus mitos, com seus fantasmas, com tudo aquilo que se dissolve, é um exercício de linguagem. Todo esse império da linguagem, poderoso e cativante, é que faz com que o homem e suas palavras sangrem pela mesma ferida.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 29/07/14.


 

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