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O paradigma desgastado

Batista de Lima



Nunca o ser humano precisou tanto da arte como agora. A tensão cada vez maior entre o ´eu´ e o ´nós´ só é suportável quando derivamos pelo mundo simbólico que a arte nos proporciona. A desertificação provocada pela modernidade provocou uma devastação tão mais intensa no interior do indivíduo do que até mesmo no seu entorno. A terra arrasada não é a que vemos, é a que sentimos. O mal-estar da civilização chegou a sua culminância. Essa encruzilhada e outras decorrentes levaram o homem ao divã como a última tábua de salvação. Mas não é apenas o divã do psicanalista que tem superado essa escassez de subjetividade, é também o grande divã em que a arte está se tornando. É por isso que Márcio Seligmann-Silva detecta, no momento, ´uma espécie de segunda grande onda romântica´, que se forma no nosso horizonte como barco salva-vida para nós. Algo está acontecendo ou por acontecer, pois os modelos anteriores vivem uma exaustão tão significativa que só um tsunami oriundo da subjetividade pode dar rumo a essa geração. A prática da transdisciplinaridade, a formação generalista e a globalização do modus vivendi não têm dado conta das respostas que a aceleração das mudanças tem exigido. Uma das carências mais sentidas ainda fica por conta do tempo fora do trabalho, que não sabemos como vivê-lo. Toda a formação humana prepara para o trabalho. Estudamos para sermos autômatos, como se a felicidade estivesse vinculada às oito horas diárias de suor e lágrimas. As outras dezesseis horas do dia são esquecidas, como se a pessoa ficasse, nesse período, hibernando como uma máquina que parasse para não esquentar demais suas turbinas antes do recomeçar noutro turno. O despreparo para o ócio encurrala o homem entre dois momentos em que é máquina. É para esse intervalo que ninguém é preparado. Até certas formas de ocupação desses momentos de ócio que poderíamos elegê-las para lazer, de tão manipuladas pela indústria cultural, nos chegam de maneira tão organizacional, tão negativas do ócio que se tornam negócios. Uma das provas é o desfile de escolas de samba. Tão manipuladas de regras que parecem pacotes deslizando na avenida. A improvisação, a liberdade de manifestação não são permitidas. São esquemas tão fechados que mais negócios parecem ser. São muito mais espontâneos os blocos que as escolas. Qualquer popular entra em um bloco do tipo Galo da Madrugada, no Recife, mas não é qualquer um que desfila na Escola de Samba. Na Marquês de Sapucaí o povão é espectador nas ruas de Recife, Olinda e Salvador o povão é participante. O futebol é outra indústria em formação. As torcidas organizadas possuem estatuto, fardamento e espírito de corpo. Ou você faz parte de um paradigma ou entra no bloco dos excluídos. São tantos, pois, os excluídos dessas nossas duas principais manifestações culturais, que terminam por criar uma inclusão. Já há quem prefira o pré-carnaval, os blocos, o mela-mela, o futebol pela TV, ou pelo rádio, do que se aventurar no ingresso numa confraria, como se para o divertimento, a fantasia, o sonho, houvesse cabimento de estatutos, regimentos e palavras de ordem em uníssono. Quando um grupo se submete a essas regras para seu lazer, é tão forte a exigência de igualdade que até roupas iguais são utilizadas. São fardamentos como batalhões de milícias. Nossa vestimenta, como sendo nossa terceira pele, precisa ser administrada por nós mesmos, pelo menos nos momentos em que não estamos no ambiente organizacional. Se no momento de meu ócio não tenho a liberdade de me administrar, continuo na engrenagem do negócio, do trabalho. Diante desses ditames que fazem parte do espólio da modernidade, cabe-nos quebrar os paradigmas, e se não for possível, desgastá-los para a instalação do humano que ainda existe em cada um de nós. Os jovens têm muito o que ensinar nesses momentos de virada de mesa. Lembro-me bem das palavras sábias da recém-formada em Letras Sarah Pinto de Holanda, que no seu desabrochar de juventude, olha para este escriba e aconselha: ´Escreva sobre amenidades, a gente precisa disso. Fale que a falta delas leva ao cultivo da depressão e à tristeza das pessoas. Fale que a gente precisa sorrir, com uma máscara purpurinada e confetes no decote. Fale que a gente precisa cantar e amar e que nem tudo se acaba na quarta-feira. O que a gente precisa é de ilusão, de fantasia e de arte. A verdade, a gente lê e assiste todo dia. Ela está na fila dos bancos, na sala de espera, nas conversas de bar. A verdade abre nossas janelas e deita em nossa cama. A verdade, com suas nódoas e feridas, não respeita nem nosso sono´. Realmente precisamos agora como nunca da mão estirada da arte. Essa constatação nos remete novamente a Seligmann-Silva, quando este afirma que o homem de hoje ´precisa da arte para expressar tudo aquilo que a vida social lhe cobra em sacrifícios pulsionais´. Não sei porque, mas ainda considero a literatura como a grande arte capaz de levar o homem, que está à deriva, a encontrar um porto para ancorar. Terapêutica, a arte da leitura, não é sem razão que Freud e Lacan foram grandes leitores e constataram que a relação da literatura com a vida é tão complexa que os teóricos das letras não têm fôlego suficiente para alcançar suas estruturas profundas e que a psicanálise tem sido o escafandro mais potente para esse mergulho de prospecção. A literatura é grandiosa enquanto arte de uma desconstrução. O momento é do desconstrutivismo como primeiro passo para se desejar um construtivismo. A terra devastada é o cenário melhor para se iniciar uma nova construção. É pena que as vanguardas estejam padecendo de senectude e que nada de novo esteja acontecendo entre os polos. Uma coisa é certa, no entanto, algo grandioso está por acontecer. Os paradigmas estão atacados nas suas esquadrias de sustentação pela maresia da insatisfação humana. Temos milênios de criação de regras, tabus e preconceitos que nos foram aprisionando e nunca como agora nos sufocam. O manancial de problemas que criamos contra nós mesmos precisa entrar em processo de demolição. Pode até ser que uma nova idade média esteja surgindo, ou até mesmo uma nova idade da pedra. O que acontece é que a humanidade clama por uma libertação para poder sonhar, amar e respirar, até.

 

10/03/2009.

 

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