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O mercador

Batista de Lima


Pedro Antônio comercializa palavras. Cobra diferentemente conforme a classe de cada uma. O preço maior é para os substantivos. Os próprios custam mais que os comuns. Quando Francisquinha e Zuca tiveram o primeiro filho, ele uniu os dois nomes e aí surgiu Zuzifran. No caso de Olívio e Francisquinha, outro casal, ele combinou para Olifran. Ainda teve os casos de Josmenlúcia, Olivete e Orimar, filhos de outros de seus fregueses. De tanto criar nomes, dizem por lá que Pedro Antônio, vulgo PA, começou a vender metáforas clandestinamente.

Essas metáforas são vendidas para poetas viciados em versos. É por isso que a polícia tem feito batidas na região. A segurança não gosta de metáforas. Ainda bem que não encontraram vestígios, apenas algumas letras nos cantos das paredes, coisas de segunda categoria. Algum "H" sempre sobra e o "Ç" lamenta e chora na sua luta contra a força do "SS". Antes de ontem, com a chegada de um carregamento de verbos, aconteceu um verdadeiro corre-corre. Todos queriam adquirir os últimos lançamentos verbais. Eram peças novinhas de todas as conjugações.

Interessante é que essa carga verbal vinha camuflando cartas de amor muito bem escondidinhas. Ainda há compradores antigos que apreciam as ridículas cartas de amor. A cada compra de uma dessas cartas, geralmente em papel mais ou menos perfumado, o freguês recebe uma caneta Parker, a tinta, e um tinteiro da mesma marca, com mataborrão. Ainda vem um vidrilho com água especial e um conta-gota para pingar no meio da carta e se dizer que é uma lágrima de saudade do remetente. E tem gente que vem de longe comprar essa encomenda rara. E ainda levam bolos e tapiocas de palavras.

Isso prova que tem freguês de todo tipo. É tanto que há uma senhora de uma cidade vizinha que vem sempre procurar versos de pé quebrado. PA sempre junta, ao longo do mês, esses versos que são esquecidos no balcão. Ultimamente tem faltado "K", "W" e "Y". A meninada tem consumido muito essas letras, principalmente esta última, depois que apelidaram essa juventude de Geração "Y". É por isso que o preço delas tende a subir. Não é o caso do "O", a mercadoria menos procurada. Tem gente produzindo-a em tudo que é lugar.

Dizem por lá que uns a reproduzem ao ficarem sentados, outros ao quebrarem cocos e uns meio malucos, só de flertarem com a lua cheia. Por isso que PA tem procurado criar outras vertentes para seu mercado. Ultimamente deu para vender palavras usadas, mas jamais palavras em vão. Ele gosta das seminovas, das blindadas contra acrósticos e trovas circunstanciais. Outro dia lhe chegou um fariseu desses recém-convertidos às letras, dando lições de vírgulas, e foi expulso do recinto com dois cruzados e ponto final. Isso prova que PA não gosta de cristãos novos quando se trata de ingressantes de primeira hora no universo das letras.

Nesse negócio de palavras e letras, o importante é a criatividade, e é isso o que não falta a Pedro Antônio. É tanto que para os fregueses da terceira idade, ele possui prateleiras especiais com palavras recordativas. Há "colimar" e "olvidar", "convescote" e "tertúlia", "fianga" e "moca", "flertar" e "coió", "califon" e "ponche", "constipar" e "datilografar", "lupanar" e "alvíssara". Esse setor é um dos mais visitados por seus velhos fregueses, apesar de ser um dos mais trabalhosos, vez que eles sempre esquecem chaves, bengalas, bolsas, sombrinhas, remédios e dentaduras.

Além disso, dizem por aí que o mercador Pedro é tão viciado em palavras que o colchão de sua cama é recheado de raspas verbais, acrescidas de raízes latinas e prefixos gregos. Os travesseiros são feitos à base de desinências verbais e sufixos do tupi-guarani. Nas fronhas estão impressos poemas atrevidos de Baudelaire e erotismos de Hilda Hilst. Pendurado na porta de entrada tremula um cartaz de metro com foto de Ana Cristina César. Toda a ambientação da casa de PA é á base de letras, palavras, poemas e alguns sonetos clássicos gritando para serem recitados em saraus sextafeirinos.

Esse apreço de Pedro Antônio pelas viagens nos territórios verbais leva-o a sonhos em que palavras lhe embalam em acalanto. Diz ele que os sonhos que o apetecem são aqueles cuja trilha sonora são canções cantadas por palavras alegres e sonoras, dessas que vêm com a boca cheia de vogais, como "maio", "Saara", "Piauí" e "álcool". É por isso que a cada dia PA menos fala e mais solfeja. Sua vida transcorre entre palavras e com elas ele luta todos os dias, por achar que lutar com palavras não seja luta vã. Possui projetos verbais entre seus sonhos proparoxítonos. Costuma defender a ideia de que a vida necessita de ser transformada em uma grande metáfora, e, se possível, uma metáfora de sonoras palavras lacriamorosas.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 17/06/14.


 

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