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O menino mágico

Batista de Lima



Daniel descobriu que era mágico quando ainda tinha seis anos. Com um ovo de galinha nas mãos, ele se concentra, aperta o ovo e dele sai piando um pinto amarelo. Nos momentos de tédio, no seu quarto, transforma a cama em avião e circula em segundos pelo Rio, São Paulo e Fortaleza. Esse garoto é criação de Rachel de Queiroz, no seu livro de literatura infantil O menino mágico, da José Olympio Editora, de 1969, já com mais de duas dezenas de edições. As ilustrações são de Gian Calvi e o único comentário presente no livro é a orelha do crítico Valdemar Cavalcante. O crítico relata que colocou o livro nas mãos de um garoto intranquilo e o mesmo ao começar a leitura foi se acalmando até ficar absolutamente concentrado. O grande mérito do livro, no entanto, é promover para o leitor juvenil, esse ingresso necessário no mundo simbólico. Não é fácil, para o escritor, servir de guia, com sua escritura, para esse grande momento do ingresso da persona no universo da subjetividade. O fantástico, o maravilhoso e o mágico encantam porque levam a criatura a extrapolar suas dimensões reais. O tédio do enclausuramento de Daniel, nas dimensões do seu quarto, é vencido quando ele alça vôo na sua cama voadora, graças ao poder da imaginação. Isso pode até nos levar a esquecer que por trás dessa aventura, há um guia que é a autora. Há quarenta anos, Rachel de Queiroz lançava esse seu livro para o público infantil. Acostumada a escrever para adultos, uma literatura encrespada, neo-realista, com enfoque em temáticas épicas do Nordeste, foi surpreendente encontrá-la nessa sua incursão por um universo literário dos mais difíceis. O personagem principal tem o mesmo nome de seu pai, Daniel. O cenário é o Rio de Janeiro, mas na hora do devaneio, o garoto não deixa de passar pelo Ceará querido da autora. Aliás, essa ligação de Rachel de Queiroz com o seu Ceará querido vem desde quando aqui ela nasceu, em 1910. Toda a sua trajetória literária sempre teve como porto de partida algum referente cearense. A crítica social é uma das características na obra de Rachel de Queiroz. Até nesse seu livro infantil ela pontifica com seu senso crítico, ao dizer pela boca do seu menino personagem, ´ninguém sabe onde é que mora o Juiz de Menores.´ Em sua trajetória de escritora, foi a autora julgada, patrulhada, perseguida a ponto de ficar por um tempo presa no Corpo de Bombeiros, de Fortaleza, e deixar o Partido Comunista por querer manipular suas obras. Rachel de Queiroz era mágica também, na hora de ser independente. Ao ser a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras, prova seu talento e seu destemor. Gostava imensamente do Ceará e de seus familiares. Quando na orelha do livro aparece escrito que Rachel de Queiroz escreveu esse livro especialmente para seus filhos, trata-se, na realidade, de seus sobrinhos que ela tratava como se filhos fossem. Portanto, pode-se dizer que Daniel e Jorge, os dois irmãos, podem ser os dois sobrinhos seus, um mágico, o outro matemático, um marcado pela subjetividade, outro pela objetividade. Um bem Dom Quixote infantil, o outro, Sancho Pança com os pés no real. As intertextualidades se fazem presentes em qualquer escritor, por isso ser feliz no dizer, quem afirma: eu sou eu e minhas leituras. Afinal, nada que se escreve, consegue ser totalmente original. Rachel de Queiroz era, antes de tudo, uma apaixonada leitora. Desde a mais tenra idade debruçava-se sobre os clássicos da literatura, presentes na sortida biblioteca que seu pai mantinha em casa. A seca do quinze que ela romanceou tão bem, ainda adolescente, ocorreu em todo o Ceará quando ela tinha apenas cinco anos de idade e morava na Capital. Mas as leituras que fez, de Rodolfo Teófilo, de Domingos Olímpio e dos jornais e revistas da época, fizeram-na conhecedora do fenômeno que retratou. Assim, para escrever O menino mágico, ela também leu histórias infantis, traduziu algumas e as contava aos seus sobrinhos, nas temporadas de convivência com eles. Daí a facilidade de pô-las no papel. É lamentável a falta de leitura na garotada de hoje. Por isso que as dificuldades de escrever são enormes. O que acontece nesse livro de Rachel de Queiroz faz parte do dia-a-dia das pessoas mas que não é notado nem aproveitado. Daniel e Jorge são os dois momentos da existência humana. Os dois componentes da formação de uma personalidade estão ali presentes. O livro é dicotômico, porque a grande literatura é cheia de dicotomias. Daniel é o sonho, o devaneio, a ternura, a noturnidade humana. Jorge é o tributável, a racionalidade. Os dois juntos instauram o conflito existencial que acompanha a ser humano através dos tempos. Estamos sempre sendo provocados a seguir o rumo já traçado dos caminhos, ou procurar os atalhos da aventura. Estamos sempre entre seguir as retas, ou inventar as curvas. Carregamos em nós engenheiros e poetas em luta permanente. O que Rachel de Queiroz fez, foi particularizar em Daniel e Jorge estas duas facetas da existência humana. Os dois estão em cada um de nós, como estão Dom Quixote e Sancho Pança, o sol e a lua, a tempestade e a bonança, o arco e a lira.

 

24/03/2009.

 

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