top of page
  • Foto do escritorBatista de Lima

O menino do circo

Batista de Lima



No tempo quando eu menino, aportou em Sipaúbas, um circo de tão pequeno, que só tinha de empanada, lençóis que o povo da terra emprestava por ingresso. Tinha o palhaço Fuxico que era seu empresário e a moça Inacinha que era malabarista, quando não estava na venda dos seus ingressos. Para completar o elenco, tinha um garoto sem vista que cozinhava para os três e cuidava do pequeno aquário dos peixinhos da atriz. Esse garoto sem idade só tinha a roupa do corpo e um baú feito de sola, com duas alças nas costas, que ele portava no lombo. Quando Fuxico fugiu, levando os lençóis do povo, e as ancas de Inacinha, deixou esquecidas as contas e o menino com seu baú.

Era um garoto que amava as brisas e todo nascer do sol. Não tinha luz nos seus olhos como aquela que me ofuscava a vista. Via nas coisas todas tudo aquilo que lhe tudificava. O som das águas nas suas oiças diziam quão fundos estavam os rios. Tocava o vento com sua pele de tantos tatos. Fazia jarros de barro e gesso com muitos tratos retratados. Sabia ler a cor da noite que nunca tive o prazer de ver. Era uma garoto apenas jovem e nada mais transparecia. Sabia a dança que a lua dançava. Sabia o cheiro que se esvaía dos pingos d'água quando chovia. E quando triste queria ficar, cantava loas para a tristeza, amando a dor que o cruciava.

Era um garoto, que como outros, portava sonhos dentro dos sonhos. Buscava abismos que se escondem em cada coisa, e que meus olhos de pecador nunca jamais romperam a pele. Via sem ver o lugar qualquer que certa dor no seu vizinho tinha costume de se alojar. Era um garoto que costumava falar aos peixes presos e tristes nos seus açudes e poços. Tinha o tal baú fechado, guardando coisas que só sua mente podia ver. Era um baú que um dia lhe deram devidamente trancafiado. Sempre trancado, aquele móvel repleto estava de tantas coisas imaginadas. Ali o tempo acorrentado lhe permitia curtir as horas, eternizando cada manhã e tangendo as tardes para o sem volta.

Era um garoto que via sem olhos muito mais do que quem olhos tinha. Olhava as coisas, dando-lhes a volta, e depois nelas entrando por portas que nunca abrimos. Conhecia os abismos que as peles guardam, e neles navegava em sagrações de lonjuras. Cultivava o carinho dos pássaros que faziam convescotes nos seus braços e refeições em suas mãos. Quando se banhava na lagoa, recreava com os peixes que lhe saltavam em volta. Era puro como a mata da serra, cristalino como as águas das biqueiras, e jamais se envergonhava da pureza de sua nudez.

De bem, o garoto só possuía o baú. Era um baú soturno e de chaves desaparecidas. Só ele conseguia desvendar o que ali se alojava. Perguntando o que nele guardava, ele sempre respondia que era tudo que se podia pensar. É tanto que em horas de tédio ou de algo que o importunava era ao baú que recorria. Sentado ao lado de seu único bem, nele depositava tudo que o importunava. Mas também dele retirava companhia para seus sonhos vestidos de vastidões. Era portanto um baú sempre cheio por estar sempre fechado. Era bem maior que o mundo todo, que lá fora se estendia.

Muitos incautos por lá passaram, botando preço no baú fechado. Queriam ver o que não viam por não saberem como olhar. Muitas histórias já circulavam dando sentidos àquele móvel de que só o garoto tinha o segredo. Todos da terra se compungiam do garoto se esquisitando. Teve um prefeito que lhe ofertou casa e comida querendo a posse do baú trancado. No seu barraco fora da rua não tinha luz pois ele via na escuridão. Tinha panela, fogão a lenha, pote de barro com água dormida e cantareira. Esse garoto com sua pureza caiu no afeto daquele povo. Traziam água na sua sede, traziam boia na sua fome.

Era um garoto que não sabia de onde vinha e muito menos aonde ia. Estava ali em Sipaúbas dono do mundo que lhe tocava. Quando sozinho ou em desventura, abria sem chave o seu baú, para ver nele o que lá não havia colocado. Via terras de planícies, túneis azuis e animais gordos como nuvens de muita chuva. Ali no baú via pai, via mãe, via irmãos como os outros garotos viam nas suas casas da rua.

Certo dia nebuloso e triste, Sipaúbas teve um sobroço, pois o garoto que carregava a noite foi pela noite levado. Deitado na sua fianga o garoto fazia só corpo, e o baú posto a seu lado estava deserto e seco. Foi aí que Padre Inácio, catequistas e sacristãos transportaram ao Campo Santo, o corpo santificado daquele anjo deitado. Junto levaram o baú, pesado de perguntas tristes que nenhum acompanhante sabia como decifrar. O garoto foi transportado no velho caixão das almas e posto a sete palmos ao lado do baú fechado. Até hoje não se sabe se plantados ou nascidos, pois surgiram por sobre a cova, dois pés de girassol de floração permanente, com duas flores frondosas, como dois grandes olhos girando sempre no rumo do sol. São os olhos do menino triste que ajudam o astro rei a brilhar mais em Sipaúbas.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 27/12/2016.


 

3 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page