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O Manifesto Siriará


Batista de Lima


Em 14 de julho de 1979 foi aprovado o Manifesto Siriará. Sua confecção inicial ficou a cargo dos escritores Adriano Espínola, Carlos Emílio Correia Lima e Jackson Sampaio. Levada a proposta para a plenária e discutida exaustivamente foi finalmente aprovada pelo membros presentes. Como quase ninguém possui hoje esse Manifesto, e a pedido de muita gente interessada em conhecê-lo, aqui vai sua transcrição integral, bem como a relação dos escritores que o assinaram. Além dos três signatários já citados, constam as assinaturas de Aírton Monte, Antônio Rodrigues de Sousa, Batista de Lima, Eugênio Leandro, Fernanda Teixeira Gurgel do Amaral, Floriano Martins, Geraldo Markan Ferreira, Joyce Cavalcante, Lydia Teles, Márcio Catunda, Maryse Sales Silveira, Marly Vasconcelos, Natalício Barroso Filho, Nilto Maciel, Nírton Venâncio, Oswald Barroso, Paulo Barbosa, Paulo Veras, Rogaciano Leite Filho, Rosemberg Cariry e Sílvio Barreira. Eis então o texto: "Nosso regionalismo é um anti-regionalismo".

"O ´mercado´ literário nacional espera de nós a caricatura de nossa realidade, o exótico, o folclore do áspero, do seco, do faminto, do sem terra; espera de nós cacto, cangaço e coloquialismos bizarros. Somente dentro desta roupagem nos permitem lançar nacionalmente nossa ´mercadoria´.

Contra este comércio de exotismos, alimentado inadvertidamente até por forças sociais conscientemente progressistas, nos contrapomos. Pois os meios de comunicação fazem com que vietnans, opeps, nicaráguas e democracias relativas invadam nossa oca tabajara. Pois o áspero, o seco, o faminto, o sem terra, o sem direitos, o sem voz, não é uma idiossincrasia da terra de mandacarus, poentes ensanguentados e chãos de pura poeira.

Nosso estômago e nossa ´máquina´ de criar símbolos são obrigados a executar a fagia da própria poeira, do resíduo industrializado que vem do Sul e da copiosa avalanche dos modismos importados. Devemos assumir a postura de um velho filósofo alemão que sabia mais do que nós: nada do que for humano nos será indiferente.

Somos sismógrafos psico-sociais de uma região subdesenvolvida, encravada num país subdesenvolvido, colocado às margens da galáxia imperialista.

Mas SIRIARÁ é também um arcadismo exótico, com intenção de resumir o conflito numa só palavra sonora, com intenção de atrair o gosto do ´mercado´ carente de sabores fortes. Não nos furtamos ao exercício da contradição.

Ser escritor é esquadrinhar, intuir, profetizar; é sujar-se na lama das décadas e dela fazer surgir a flor da estética. Ser escritor é tentar colocar sobre a dor a estética da dor. Mesmo os pintores marginais, por exemplo, quando ainda marginais, puderam, e a História enfileira amostras disso, trocar suas telas ´absurdas´ por um prato de comida. Que algum poeta tente trocar versos por feijão.

O escritor é, acima de tudo, um nervo dolorosamente exposto, um nervo à flor da pele dos indivíduos de qualquer classe social que detenham este duvidoso privilégio. O escritor é uma central-potência de ritos. A literatura é a festa de si mesma, vertiginosa festa que surpreende a situação do humano frente aos enigmas do universo, ao seu fogo e sua água, à sua corrente. Se não fôssemos escritores pequeno-burgueses, datados na História e na Geografia, gostaríamos de ser anônimos criadores de lendas e mitos.

Sabemos que nossa literatura só faz o círculo da própria elite que a gera. Devemos lutar por uma literatura com a ampla respiração do povo. Nosso espaço precisa ser criado, inventado, impactado, pois da ineficácia social de nossa literatura somos cúmplices. Os veículos e a linguagem ainda não superaram a dicotomia entre o popular e o erudito.

SIRIARÁ - andar pra trás - como se voltar fosse necessário para seguir, como se dois passos para trás sempre resultassem em três passos para frente, como se o máximo do marginalismo fosse o salto para o futuro.

O sertão nordestino ainda gera seus escritores mas as cidades nordestinas ainda não geram seus escritores-operários. Daí a irresistível atração e a imensa distância que separa o intelectual pequeno-burguês do poeta de cordel. Um é realidade alienada do outro. Ambos são produtos de classes sociais, idades culturais e formas de produção enormemente afastadas. Mas, o primeiro, usando instrumentais práxicos, precisa aprender o difícil malabarismo de circo: um pé em Si o outro no Outro, e o corpo se fecundará: SIRIARÁ.

A Província do Ceará não interessou nem ao colonizador português - mera passagem para o Maranhão. Até que os aventureiros farejaram prata (inexistente) em Maranguape e os Jesuítas farejaram almas e fertilidade na Ibiapaba. Até que a seca se transformou em indústria de malversação de verbas e de interesses demagógicos. Até que a indústria americana descobriu a cera que a carnaúba chora. Agora temos praias, rendas, literatura ´regional´, ministros, jovens compositores, ´super stars´ do cinema, o mito de Iracema. Petróleo em Paracuru e urânio em Itataia.

Mas o que nos interessa é a alma moleca, a vaia ao sol, os padres maçons e desbocados do Império, os bispos-camponeses de agora, o aríete das penas terçadas pela Padaria Espiritual, a verve profusa e louca dos cantadores da caatinga.

Parodiando Jáder de Carvalho: o cearense já foi surpreender a puberdade da Amazônia e do ´boom´ industrial paulista. Seringueiro, pau-de-arara, bóia-fria. E sua inteligência acompanha a mesma vocação expansiva da mão-de-obra. Em êxodo, diáspora, dispersão, esgota sua força e nem ao menos se reconhece.

Por tudo isso, somos:

1) Contra a ritualística de um passado literário que formal e conteudisticamente não mais representa a realidade nordestina do momento. Viva Graciliano, José Américo, Zé Lins do Rego, ´O Quinze´, de Rachel, João Cabral, Grupo Clã... Viva. Como lição, roteiro, experiência. Superação, não supressão. A seca e o sonho continuam.

A favor de um texto terra (conteúdo); de um texto mestiço (formal); de um texto Siriará (intenção e linguagem).

2) Contra o colonialismo interno do Sul e a condenação regionalista da literatura nordestina.

A favor de uma literatura sem vassalagem, nordestinagem, inferioridade. Pensar e sentir o Nordeste e ter o direito de perguntar pelo Brasil. E não somente o Nordeste, território à parte.

3) Contra modelos e formas de pensar e escrever importados - impostados, impostos - postagem alienante da culturália tupiniquim mal pensante.

A favor de uma literatura brasileira brasílica. Autóctone. Sem totens nem tabus. Sem ´fervor reverencial´ à cultura da solene mamãe Europa e adjacências e/ou do executivo caubói do Arizona. O universo situado a partir de um discurso e uma linguagem crítica que reflitam a nossa própria situação/condição histórica. Pensar e sentir o Brasil no mundo. E o mundo no Brasil.

A favor de uma escritura nordestina/brasileira, brasileira/planetária. Força centrípeta e centrífuga da linguagem. Da literatura. Da História. Da sabedoria cosmo-nativa.

4) Contra toda forma de opressão, de repressão política e/ou cultural. Fora, Fuuu - a máscara policialesca da moral e dos bons costumes (literários). Fora a censura planaltina. Fora Fuuu - todas as patrulhas. E todos os pulhas ideológicos e literários. Queremos a verdade e a sinceridade. Ainda que tarde. Pra tudo rimar com Liberdade.

A favor de uma literatura de combate, de questionamento, de indagação. De si mesma. Do indivíduo. Da sociedade. Do Brasil D.R. Isto é, Depois de Rosa. Aqui e sempre: AVE, PALAVRA".


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 11/06/13.


 

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