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O livreiro do Crato

Atualizado: 27 de jan. de 2022


Batista de Lima





Soube por informações de amigos e familiares que Ramiro Maia nos deixou. Partiu sem pedir licença e quando no céu, recebeu a mesma saudação da Irene, de Bandeira. São Pedro no seu cansaço de porteiro milenar apenas disse: - Entre, Ramiro, você não precisa pedir licença. E Ramiro chegou com um calhamaço de livros para distribuir com tudo que é anjo, santo e divindade. Seu corpo ficou no Crato e sua alma subiu ao céu nos píncaros dos 102 anos de amizade com os livros. A primeira vez que vi Ramiro Maia foi na primeira metade da década de 1960. Naquele tempo, estudante do Seminário Apostólico da Sagrada Família, em Crato, nas folgas estava de olho nos livros à venda da livraria Ramiro. O primeiro de que me engracei para adquirir foi um livro de bolso que continha dois romances editados. Eram Homens e escravos, de Tolstoy, e Fumaça, de Ivan Turgueniev. Foi o primeiro livro que comprei na vida, e o vendedor foi o próprio proprietário da livraria, exatamente Ramiro Maia. Com o tempo comecei a freqüentar cada vez mais aquela livraria e adquirir livros sobre o Cariri, sobre o cangaço, e material de Patativa e outros poetas populares. Lá sempre estava em conversas demoradas com Ramiro Maia, seu grande amigo e bom papo Dr. Raimundo Borges. Sua livraria além de vender livros, distribuía camaradagem. Crato, cidade de intelectuais, acorria àquela casa de cultura para adquirir as últimas novidades em lançamentos. Mas não era só isso. Era também a boa conversa, o papo interminável em torno de temas culturais e religiosos. Ramiro Maia era um católico praticante, estava sempre ali, num dos primeiros bancos da igreja de Nossa Senhora da Penha. Pertencente a uma estirpe de homens de livros, era irmão de Luís Maia que aqui em Fortaleza fora proprietário da livraria Renascença, onde os principais lançamentos literários ocorriam. Isso no tempo em que lançamento literário era em livraria e não em clube elegante. Imaginar-se a quantidade de livros que passou pelas mãos de Ramiro Maia é o mesmo que se pensar na quantidade de pães que poderia passar pelas mãos do padeiro do Crato em décadas de labuta. Acontece que o Crato possuía várias padarias fornecendo o pão do corpo, mas não tantas livrarias repassando o pão do espírito, o livro. Também não se pode esquecer que era o Crato uma cidade, por longos anos, possuidora de dois seminários, três conventos de freiras, um bispado, duas rádios e a cidade interiorana que já nos anos 1960 possuía curso superior. Isso tudo sem contar toda a constelação de cidades caririenses que iam beber no Crato, a fonte da cultura regional. A livraria Ramiro esteve aberta ao público por 75 anos, tendo à frente, sempre, Ramiro Maia. Primeiramente, na rua João Pessoa, depois na rua Senador Pompeu, sempre trazendo ao público, toda a variedade de livros didáticos e os mais significativos lançamentos literários. Pertencente a uma estirpe famosa da zona Jaguaribana, os Maias, já começa a lembrar famosa obra de Eça de Queiroz. Depois, rebento de uma prole de onze irmãos, pelo menos quatro se dedicaram à sublime lida com os livros. Ramiro, no Crato; Aldeziro, no Juazeiro; Luís e Pergentino, em Fortaleza. Tão amigo de leitores, a ponto de ser responsável pela indicação de leituras apropriadas à formação e à idade do comprador de seus livros, muitas vezes o freguês cedia aos seus argumentos e levava livro diferente do que tencionava anteriormente comprar. Quando esses argumentos não convenciam, chegava a doar livros para aqueles ávidos de leitura. Também era muito amigo de famosos escritores. Basta dizer que nos seus cinquenta anos de livreiro lá estava Rachel de Queiroz, no Crato, para homenageá-lo. Afinal, não foi só livreiro, mas também cursou, na cidade, a Escola Técnica e como componente do Tiro de Guerra, do Crato, foi da primeira turma e o primeiro do Brasil. Para provar sua atuação em todos os setores sociais do Crato, é bom lembrar sua participação nos eventos religiosos da cidade. Irmão do Santíssimo, não só era amigo mas também afilhado do bispo D. Francisco de Assis Pires, exatamente o celebrante, em sua própria casa, da missa de comemoração dos seus 25 anos de casado. Casamento esse do qual nasceram sete filhos, cinco mulheres e dois homens, além de um oitavo, de criação. Nascido em 29 de julho de 1906, estaria completando agora 102 anos, se não resolvesse ir para perto de sua querida esposa que partira antes. Foi a saudade e as agruras da viuvez que o fez decidir por essa grande viagem há alguns meses. É evidente que a procissão da 1º de setembro, dia da padroeira do Crato, Nossa Senhora da Penha, deixará de contar com sua participação. Nesse dia, todos os santos da igreja principal do Crato, saem em desfile pelas ruas da cidade. Agora, é evidente, faltará Ramiro Maria, carregando o andor de São Vicente de Paulo, o que fez durante décadas. Por ocasião de sua partida, homenagens as mais variadas lhe foram prestadas através de substanciosas crônicas de Emerson Monteiro e Olival Honor. Não se pode esquecer o sentimental discurso da vice prefeita do Crato, Fabíola Alencar na hora do sepultamento, que enalteceu, a importância de Ramiro Maia para a cultura caririense. Daquele quarteto de amigos de intermináveis papos na livraria Ramiro, só resta o centenário Dr. Raimundo Borges, porque Ramiro Maia foi fazer companhia ao Dr. Pedro Felício Cavalcante, várias vezes prefeito do Crato, e ao Dr. Luís de Borba Maranhão. A Livraria Ramiro era o ponto de encontro dos intelectuais do Crato, assim como era, em certa época, o sabadoyle no Rio, de intelectuais em torno de Plínio Doyle, inclusive com a presença constante de Drummond. Aliás Ramiro Maia sempre me pareceu fisionomicamente com Carlos Drummond de Andrade, e o Crato, como o Rio de Janeiro do meu Cariri.

 

13/05/2008.

 

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