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O lirismo de José Valdivino


Batista de Lima





Há um suave sentimentalismo nos poemas de José Valdivino de Carvalho. Observador do seu entorno e de si próprio, pode-se, a partir dessas duas dimensões do seu existir, constatar o lirismo que emerge da sua construção poética. A biografia de José Valdivino de Carvalho está impressa nos seus versos. A saudade dos primeiros tempos na fazenda, o alumbramento diante do mar e a transfiguração da concha comprovam uma refinada sensibilidade que transforma a imagem fugidia na concretude do verso esculturado. Daí o cultivo do soneto elaborado nos mais diversos ritmos e formas.


Sua melhor metáfora, no entanto, no sentido de lhe definir como poeta, é a concha. A concha como estrutura em construção enquanto tiver vida o molusco. O poema como sendo a concha, e sua vida interior como a poesia. José Valdivino construiu, enquanto vida, uma arquitetura poética que vai do verso à família. Da harmonia do poema à fraternidade dos que lhe eram caros. E aí vem o milagre poético “de ensinar uma concha a ter saudade”. Vem também a casa como uma concha maior, que só tem vida quando os moradores mourejam no seu interior e fazem de seus compartimentos, prolongamentos de seus versos e depositários de suas mensagens.


A casa, como sua terceira pele, simboliza agasalho, mas, ao mesmo tempo, é um somatório de afetos. A casa é um continente cujo conteúdo a transforma em lar. Por isso que no seu soneto “Lar” ele conclui sabiamente, no segundo terceto, “volto… e, feliz, recolho-me sem travo, / tal como a ave se recolhe ao ninho, / tal como a abelha se recolhe ao favo”. Esse retorno benfazejo à casa, depois da jornada de trabalho, explicita não apenas o retorno possível, mas a lareira, o fogo afetivo que se instala no centro da construção alicerçada na convivência harmoniosa e terna dos componentes do clã. José Valdivino de Carvalho transporta aos ombros uma casa dilatada no país do coração.


A casa que aqui citamos é principalmente a que se ergue na memória. Portanto, o Engenho Livramento deve ser incluído nessa relação de casas memoriais. Prova disso é que no seu primeiro livro, Coração, de 1939, dos 42 sonetos ali estampados pelo menos uma dúzia faz alusão à aquele engenho de Redenção, encravado na sua memória. Pode-se, então, considerar o poeta como um garimpeiro das lembranças telúricas. Nesse monturo de lembranças, pode-se prospectar uma temática bucólica o que o torna, já naquele tempo, um defensor da ecologia.


Esse seu livro Coração é um rastreamento de um paraíso perdido, onde os materiais de construção são pedaços de lembranças partidas que vão se emendando através da escrita, para o soerguimento do velho Engenho do Livramento, do qual ele não se livra, nem tampouco o leitor. Surge daí, sinestesicamente, um banquete de signos adocicados, bagaceiras alvacentas, chaminés entumecidas e o estalo da cana como um gemido no trituramento das moendas. O açude é uma grande lágrima encrustada na paisagem, e foi a terra que a derramou na partida do seu filho, em busca da cidade grande. Ele afastou-se daquele mausoléu de lembranças, onde jazem seus ancestrais, seu cordão umbilical e seus dentes de leite jogados de costas sobre o telhado da casa grande ao som do “mourão, mourão”.


Cantar sua terra foi uma forma de reativar todos esses elementos: a água do rio, o fogo da chaminé do engenho, o ar puro do pé de serra e a terra mãe sagrada cantada também pelas graúnas e sericoias, e ornada de laranjais. Nesse cenário de purificação, foi onde fincou raízes o cidadão José Valdivino, que reconstruiu todo esse mundo com os materiais verbais mais duradouros eternizantes. A construção conseguida foi o poema, e é através dele que tudo volta a funcionar.


O leitor da escritura de José Valdivino de Carvalho, no seu trajeto lectural, termina por associar a harmonia do seu verso lírico à singeleza de sua vida cotidiana, à pureza das suas mensagens, nos ensinamentos ético-morais que disseminou ao longo de sua vida de professor. Privilegiado por ter nascido exatamente na cidade redentora do Ceará, libertou o estro em prol de uma transfiguração poética em que o foco era a iluminação dos caminhos a palmilhar, beneficiando os necessitados da luz do saber. Foi por isso que se dedicou ao magistério, como professor de Português e Francês nos melhores colégios de Fortaleza.


No seu mister de lecionar para gerações seguidas, laborou em sala de aula em torno dos mais renomados escritores, através dos textos ilustrativos de suas aulas. Não é pois de se estranhar que influências desses estudos perpassem sua escritura. Nas intertextualidades que detectamos, pontificam o metro e a rima parnasianos. Mas é do Padre Antônio Tomás a fonte de que mais se abeberou sua poética. Prova disso é que um de seus livros publicados foi um estudo sobre o poeta acarauense, e que deu como título A poética do Padre Antônio Tomás.


Além da temática ética e moral à moda Padre Antônio Tomás, respingada da religiosidade que praticava, José Valdivino preocupou-se com a ecologia. É tanto que, em torno de uma dezena de seus poemas, a preocupação com o meio ambiente já aparece se antecipando às grandes campanhas que hoje se desenvolvem em torno da proteção da natureza. Nessa glorificação do ambiente natural, o poema enfático é “Bucólica”, do seu livro Tardes sem sol, de 1978. São quinze estrofes de quatro versos decassilábicos em rimas ABAB onde desfilam “serras verdes”, enfeitadas de “cajueiros, mangueiras, laranjeiras”, todos servindo de palco para a orquestra de rolinhas, graúnas, bem-te-vis, corrupiões, galos-de-campina, vem-vens, anuns e azulões. Essa sinfonia toda tem como teatro, a serra, o açude, a casa, o engenho e o verde atapetado dos montes. Esse poema é tocante para aqueles que um dia vivenciaram o sertão nos seus momentos de bonança, mas que o destino os colocou na estressante vida da metrópole.


José Valdivino de Carvalho é um impressionista que em vez do pincel usa a pena e vai pintando com signos verbais uma paisagem instalada na memória. Ler os seus poemas é se vestir de uma pureza que transita do poeta criador ao mundo que ele pinta. Primeiro ele cantou sua terra, para depois enfrentar o mundo dos outros. Como poeta foi um professor, como professor, não deixou de ser poeta.


02/09/2008.


 

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