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O Liceu que conheci

Batista de Lima


Ingressei no Liceu no primeiro semestre de 1968 para cursar o primeiro científico à noite. Eram tempos difíceis aqueles. Os professores estavam com seus salários atrasados há meses. As manifestações estudantis ocorriam quase que diariamente. Havia poucas aulas e muitas passeatas. Saíamos a pé, do Liceu à Praça José de Alencar, gritando palavras de ordem contra a ditadura. Alguma coisa estava sendo tramada para destruir nossos sonhos mudancistas. O ovo da serpente estava prestes a trincar. E tudo aconteceu em dezembro daquele ano. Foi decretado o Ato Institucional número V. O fatídico AI-V veio para desmantelar nossos propósitos.

1968 foi um ano de construção de um sonho que desmoronou no mês de dezembro. O ano seguinte foi de destruição. As perseguições às lideranças estudantis deixaram o Liceu muito soturno. As aulas eram poucas e o medo passeava pelos corredores. Muitos colegas fugiram ou foram presos. Não se viam mais Custódio, Pituba, Mapurunga, Julinha, Anita, Cardoso e outros mais que se reuniam na Praça em frente ao colégio. Mas as reuniões mais secretas ocorriam na Barra do Ceará, do outro lado do Rio. Era o Dover que dirigia as reuniões. Trazia sempre notícias de colegas que tinham sido presos. O nosso professor Gilberto Sydney Telmo não veio mais dar aulas. Só alguns mestres continuavam a dar suas aulas.

Além de Telmo havia o professor Chico Timbó, o Rubens Brandão da Rocha e a professora Maria José Teixeira, que ensinava Literatura. Por conta dos atrasos de pagamentos de salários e de movimentações políticas, os professores faltavam muito às aulas.

No caso da professora Maria José, algumas vezes eu a substituí em sala de aula. Se ela se atrasasse, já estava eu à frente da sala falando sobre José de Alencar e outros autores. Isso já era em 1969, no segundo ano científico. Foi então que chamei a atenção do Carneiro Portela, que era aluno de outra turma, e de quem recebi o convite para participar de reunião no Clube dos Poetas Cearenses, na casa de Juvenal Galeno.

A partir de então, a minha militância política mudou para militância literária. No Liceu havia alguns poetas que já participavam do Clupce e os papos literários eram entremeados de papos políticos, mas a poesia, aos poucos, ia ocupando um espaço maior. Em sala de aula pouco se estudava de novidade em Literatura e Língua Portuguesa, além do que eu havia adquirido em cinco anos estudados anteriormente no Seminário Apostólico da Sagrada Família. O contato com a Literatura era mais no Clube dos Poetas. Foi lá que tive os primeiros contatos com Jáder de Carvalho, José Valdivino de Carvalho e Alcides Pinto.

O Liceu, no entanto, foi o campo em que germinou o Clube dos Poetas Cearenses. Se não fosse os contatos com os amigos liceístas, não sei como seria minha vida literária hoje. O Colégio Estadual Liceu do Ceará carregava uma atmosfera mítica que superava outros colégios de Fortaleza. Por aquela vetusta casa já haviam passado muitas das personalidades da cultura e da política cearenses. Além disso, meus tios e muitos conterrâneos de Lavras da Mangabeira por ali haviam passado e contavam glórias de seu tempo de estudantes. Era um orgulho subir aquelas escadas para assistir às aulas.

Lamentavelmente o momento político era desfavorável para associações e grêmios. Assim, os três anos em que estudei no Liceu (1968, 1969 e 1970) poderiam ter sido muito mais proveitosos não fora o medo, acompanhado da repressão a que éramos submetidos. Além disso, a criação dos anexos, que eram colégios estaduais nos bairros, fez com que tradicionais professores da instituição migrassem para essas escolas como forma de acomodarem-se mais próximos de seus domicílios.

Foi possível, no entanto, encontrar alguns deles, mas desmotivados pela atitude governamental em atrasar por longos meses o pagamento dos seus salários.

Há, no entanto, ainda hoje, agradáveis lembranças do Liceu. Uma delas era a beleza arquitetônica do seu entorno. O Jacarecanga possuía, à época, as casas mais bonitas de Fortaleza. Eram resquícios de uma Belle Époque que afarmoseara nossa cidade no começo do século passado. É lamentável se observar hoje que aquele bairro se encontra desfigurado e o Liceu parece um prédio angustiado diante dos escombros da memória que o cercava.

Mesmo assim, vez por outra, passo por lá para renovar na memória acontecimentos que ali vivenciei. Por ser menino de engenho, até o caldo de cana da cantina me traz lembranças sinestésicas.

Agora, nos seus 170 anos de existência, alegra-me saber que há gente preocupada na recuperação de seu glamour. A ideia de Auriberto Cavalcante de editar coletâneas com suas memórias é uma forma de restaurar nosso velho colégio, que termina ficando novo. Escrever sobre o Liceu é restaurá-lo. Por outro lado estamos nós ex-alunos recuperando o patrimônio que já nos pertenceu preferencialmente e que nunca nos deixou de pertencer. O Liceu vivifica nas suas memórias escritas. Seus ex-alunos jamais o esquecem e ler sobre ele é uma forma de retornar e reformar suas fundações no mais precios.O recôncavo dos nossos corações.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 22/09/15.


 

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