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O império do papel

Batista de Lima




Pouco se tem estudado sobre o mérito em nossa educação. Há cotas e progressões, maioridades e menoridades penais. Há, inclusive, méritos discutidos e até discutíveis. Há Látis e Quális, Enem e Fies. Há Capes, CNPQ, PIBIC, Funcap. Há pesquisas bibliográficas, fundamentais e aplicadas. Há artigos, dissertações, teses, monografias e TCC. Há anais, manuais, rituais, mesas redondas, bancas, seminários, fóruns, oficinas, congressos. Há atas, resumos, conceitos e notas. Há muita produção científica, muitos calhamaços de teorias.

Há muito papel para pouca prática. São teorias sofisticadas e práticas desperdiçadas. As portas do papel poderiam ser abertas para solução de muitas mazelas sociais que infernizam o cotidiano das pessoas. O mosquitinho da dengue faz um grande estrago entre as pessoas, enquanto uma minha conhecida elabora tese de doutoramento sobre o reflexo da asma de Proust no tamanho gigantesco das suas frases, no seu "Em busca do tempo perdido". Centenas de páginas ela escreveu, com referências de outros escritos os mais variados, vasculhando os pulmões do Proust, aparecidos em frases.

Enquanto isso a coitada da pesquisadora pegou a dengue e foi parar na fila do posto médico. Aliás, a fila do posto médico daria uma tese muito mais proveitosa se seu estudo fosse sobre diagnosticar os motivos dessas filas que rompem as madrugadas, aumentando mais a dureza da vida dos desvalidos. Se Rodolfo Teófilo fosse vivo já teria descoberto vacina contra dengue, já teria produzido outro mosquito híbrido que destruiria esse dengoso aedes. Não precisaria de muito papel, nem de tantas teorias para armazenar no mofo das bibliotecas para a festa das traças.

Quando o pesquisador em Direito me trouxe a tese de doutoramento com 960 páginas para a revisão ortográfica, o peso do artefato ultrapassava um quilo, pois ali ainda vinham alguns anexos, ultrapassando, o volume todo, a casa das mil folhas. Era quase nada dito em termos de praticidade jurídica, enquanto se discutem a maioridade penal e a superlotação dos presídios com uma massa humana sem nada produzir. O sistema prisional brasileiro com suas mazelas é um laboratório para que se estudem fórmulas de sanar essas escolas de criminalidade.

Nas últimas décadas tem se fortalecido esse império do papel. Cada um vale pelo volume dos escritos. Enquanto isso, pouco se tem feito em torno do saneamento da periferia das grandes cidades. Pouco se tem escrito sobre pandemias que se alastram silenciosas. As depressões aumentam como mal deste novo século, provocando uma geração melancólica que procura portas abertas e encontra paredes sem portas. Nos enclausuramentos urbanos só entram imagens de uma TV que exorbita nas ofertas daquilo a que não se tem acesso. São temas que gritam para serem estudados. Esse império do papel começa lá no ensino fundamental em que o tradicional livro didático vem sendo substituído a cada dia pela descartável apostila. No ensino médio essa prática é tão gritante que já existe aluno que fotografa, com o celutar, o caderno do colega para não ter o trabalho de manuscrever. Outros fotografam o quadro em que o professor escreve. Há ainda outros que em dia de prova ficam na classe esperando o gabarito das questões que será mandado pelo colega que terminou primeiro. O celular facilita tudo isso, inclusive respostas para questões discursivas.

O estudante precisa começar cedo a encontrar soluções para o social. Cedo ele pode já exercitar a cidadania ao alertar os pais para aquilo que só a escola lhe ensinou. O saneamento começa, em cada cidade, pelo gesto simples de apanhar o papel do chão e colocá-lo no cesto do lixo, evitando que o serviço de esgoto seja entupido na primeira chuva. E se o colégio não lhe dá o livro, as bibliotecas estão cheias de volumes, sofrendo de solidão. A leitura de bons livros pode ser um antídoto contra a panfletagem de teorias que grassam nos ambientes de ensino.

O papel do papel precisa ser regulado de uma forma que teoria e prática se ajustem em benefício das pessoas. As nossas grandes cidades são laboratórios vivos para a prática de pesquisas dos nossos estudantes. A imobilidade urbana é uma doença que está afetando as metrópoles e refletindo penosamente nas pessoas. A dilapidação do patrimônio histórico vai deixando a população sem memória. A ocupação de nossas praças pelos mercadores do dia-a-dia está entupindo os pulmões da cidade. A violência urbana está enclausurando os cidadãos e deixando as ruas nas mãos da marginalidade e das milícias mafiosas que crescem à margem do poder. Tudo isso é matéria viva para pesquisadores que precisam migrar do império do papel para a república dos problemas diários que afetam o nosso bem viver.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 09/06/15.


 

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