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O homem que carpia demais

Batista de Lima


Seu nome era Nicanor. Sua profissão era chorar. Chorava a preços módicos, mas gostava mesmo era de chorar de graça. Sua mãe, Dona Sula, vivia dizendo que de seus onze filhos homens, dez mamaram, o décimo primeiro, Nicanor, chorou. Chorava, quando criança, nos três turnos, apesar de sadio e bem nutrido. Com o tempo, no entanto, começou a administrar o choro. Viu que podia transformá-lo em profissão, seria o primeiro chorão profissional, com carteira assinada e salário fixo. Sairia pelos velórios, pelos enterros e pelos circos, mostrando sua arte de bem chorar.

Para chorar não precisava de motivos fortes, tipo grande tristeza ou alegria imensa. Era só querer, ou alguém pedir, que ele mergulhava em profundo transe e as lágrimas rolavam aos pares, inundando o rosto e molhando a camisa.

Chorar para ele, foi sempre fácil, mas verter as lágrimas acompanhantes fora um aprendizado mais espinhoso. Mas conseguiu dominar os dois movimentos instantâneos. Começou, inclusive, a ensinar a outros rapazes circunstantes a arte do choro. Era preciso divulgar entre os jovens essa arte milenar que ninguém interessou-se em praticar.

Na região de Sipaúbas sua arte popularizou-se e alguns discípulos surgiram, imitando-o. Acontece que, com o tempo, esse costume começou a provocar alguns incômodos. Nos velórios ele chegava, às vezes, acompanhado de alguns alunos, e exorbitava no seu espetáculo. Gritava, regurgitava, às vezes se jogava ao chão, outras vezes rasgava as roupas. Seu espetáculo era tão rumoroso que os presentes esqueciam o morto e só tinham olhos e ouvidos para o caçula de Sula. Seu espetáculo terminava com a distribuição de prospectos em que constava endereço e telefone e suas especialidades choradeiras. Não precisava Nicanor exagerar tanto durante exéguias.

Foi por conta de seus exageros que os convites escassearam e sua presença em velórios tornou-se incômoda. Chegou a um ponto, sua obsessão pelo choro velórico, que era comum causar distúrbio nos enterros. Agarrava-se ao caixão do morto, gritava, rolava no chão e rasgava as vestes. Depois de beijar o defunto e alagar o caixão com suas lágrimas torrenciais, criava dificuldade de liberar o esquife na hora da partida para o campo santo. Dizem que no velório do prefeito Caetano Siqueira foram cinco homens para despregá-lo do caixão. Na hora do cortejo, ainda foi à frente da multidão em pantomimas fúnebres, dançando a dança do eterno, como ele chamava seus trejeitos estertorados.

Ritualísticas eram suas aulas de choro. Eram aulas noturnas e o fardamento de seus doze alunos era uma roupa preta. A sala de aula era um casebre pregado ao cemitério. A luz vinha de um facho quase apagado, ou de velas bruxuleantes. Por isso que, na prática, ele preferia velórios noturnos, sentinelas pelas madrugadas. Sua pesquisa de campo era feita entre os túmulos do cemitério em noites de escuridão total. Seus doze discípulos tinham aulas de concentração antes de dispararem em lamuriosos choros. Era preciso cada um se concentrar em algo terrível que lhes tinha acontecido. Era preciso, antes de entrar em cena, revirar a memória e prospectar nos cafundós da alma, dores e traumas do passado.

Foi por tudo isso que a fama de Nicanor extrapolou as fronteiras de Sipaúbas, chegou à região da Telha e respingou aos ouvidos do senhor Bispo diocesano. A coisa foi tratada então como precisada de exorcismo. Foi então que apareceu na pequena cidade, o Padre Guilherme Von Stirle. Era um alemão desses bem raciados, com dois metros de altura e cento e trinta quilos mal distribuídos. Exorcista famoso na Europa, estava em Sipaúbas em funções de desobriga oficializada pela diocese, mas, na verdade, ele vinha observar com perspicácia, o caso Nicanor. Esteve com o chorador por três vezes e por três vezes impressionou-se com a arte do nativo. Tanto impressionou-se com o desempenho de Nicanor que dele teve algumas lições de choro. Ao partir, comprometeu-se a enviar um manual de bem chorar que possuía na sua biblioteca.

Foi assim que um mês depois o carteiro de Sipaúbas despejou, no casebre de Nicanor, um volumoso tratado do choro de um autor russo chamado Stanislavsky. Apesar de traduzido para o português e impresso em letras fortes, não encontrou boa guarida em Nicanor que mal aprendera a assinar o nome para votar no coronel prefeito em tempos de eleições. Também as poucas leituras feitas pela professora Anita do Vale, pouco lhe trouxeram de novidades.

Além disso tudo havia o fato de que Nicanor, já em decadência, estava sendo alijado de velórios, sentinelas e enterros. Quando alguém estava prestes a bater a biela, o delegado, cabo Zezinho, recolhia Nicanor em uma das três celas da cadeia da cidade. Isso era uma forma de proteger as exéquias e dar tranquilidade ao moribundo e à família nessas horas de profundo tristeza. Acontece que o preso chorão começou a perturbar os outros presos com suas peripécias e o jeito foi transferi-lo para ficar acorrentado numa mangueira, no sítio Cabaceiras, de propriedade do coronel prefeito.

Enterrado o defunto, Nicanor era solto e aí vinha um período de sete dias de jejum e muitas lágrimas e soluços sobre o túmulo do recente morto. Aconteceu, no entanto, se passarem seis meses sem doentes terminais, sem acidentes, nem mortes prematuras em Sipaúbas. Fazia seis meses que Nicanor não tinha motivos para derramar lágrimas. Seus alunos escassearam e sua fama foi se dissipando. Nicanor então entrou em greve de fome por falta de motivos para chorar. Ainda conseguiu durar dez dias sem nenhum alimento no estômago. No décimo primeiro dia, quando resolveu voltar a comer, era tarde demais. Ingeria os alimentos e logo em seguida expelia pela boca. Morreu assim. O médico que verificou seu óbito atestou nó na tripa, causado por demorado jejum. No velório apareceu seu último aluno, Jeremias Anacleto. Chorou, gritou, rolou no chão e ao final distribuiu reclame com endereço e função. Era o novo chorão de Sipaúbas.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 03/07/12.


 

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