top of page
  • Foto do escritorBatista de Lima

O homem cremoso


Batista de Lima


O brasileiro já foi qualificado como cordial, hospitaleiro, inzoneiro, líquido, jeca e mais uma série de adjetivos, alguns até impublicáveis. Não encontrei ainda o "cremoso", como qualificativo de certos patrícios. Cremoso é o pegajoso que se dissolve, que impregna o interlocutor. É aquele que contamina até lençol freático, aquele que polui o ar e consegue impregnar as mentes. O cremoso é escorregadio, sutil feito serpente venenosa, polui na transparência e salva na aparência. Acorda cedo e dorme tarde para que sua sanha contaminadora não dê trégua às vítimas do seu objetivo. São alguns vendedores de ilusões, portadores de palavras fáceis, mas de objetivos escusos.

O cremoso tem solução para tudo, o que termina por não ter solução para nada. Conhece todo mundo e de todo mundo é parente. Esteve em todos os lugares que é o mesmo que não estar em nada. Remédios e meizinhas, conhece de tudo. É o mais limpo do grupo, o mais falante e aparenta um ar patriarcal ao incorporar todos os problemas dos circunstantes. Chora em qualquer velório e frequenta várias religiões, dependendo da circunstância. Tem um faro tão fino que prevê catástrofe e vaticina tragédias. Nas festas parece ser o anfitrião. Circula ou fica em pé, mas não se senta, para não sair de evidência. É o terror dos fotógrafos, de tanto papagaiar celebridades.

O cremoso não tem qualidades, ele é a qualidade. Como diz Pessoa, ele nunca levou porradas na vida, é herói em tudo. Quando os comuns chegam aos banquetes, ele já está na sobremesa. Nas procissões, está sempre à frente do andor. Se o santo não cuidar ele ocupa o lugar. No sepultamento está sempre à alça do caixão do morto, faz o discurso de beira de cova sempre amparando a viúva. Geralmente é candidato a alguma coisa, ou, quando não, cabo eleitoral cheio de razões. Não fala alto, prefere o pé de ouvido, mesmo não dizendo nada, mas dando a impressão de que diz. Nos períodos de campanha política, já sabe o elenco dos que vão ganhar, os fuxicos dos que vão perder.

O cremoso adora Miami, mesmo conhecendo o mundo todo, sem ter pisado em canto algum. É um eterno solteirão, na aparência, para estar disponível às interessadas. Metrossexual assumido, frequenta belos salões de beleza, academias e shoppings centers. Finório, convence os incautos e por alguns minutos impressiona os inteligentes. Acompanha-se das mulheres mais velhas e dos homens mais ricos. Diante de grandes problemas, escapa à sorrelfa; chegada a solução, arvora-se de herói. Gosta de gel no cabelo, barba sempre bem raspada e daquele ar de antigos seminaristas. É uma mistura de coroinha que ficou adulto com eunuco que não foi castrati.

Nos momentos de campanha eleitoral, o cremoso se compromete dos dois lados. Almoça com um partido e janta com o outro. Leva benesses de ambos os lados. Faz espionagem e contraespionagem entre as partes em disputa. É quando mais sorrateiro se apodera de segredos de campanha e deles tira proveito próprio. Defende a idéia de eleições todos os anos, para benefício da democracia, e, intimamente, para recheio de suas burras. Uma coisa é certa, estará nos festejos do vencedor, afinal ainda quer migalhas das sobras de campanha. A única sinecura que aceita do ganhador é uma assessoria para a qual não se exija presença no dia a dia.

O cremoso sempre existiu. Historicamente se tornou herói, porque fugiu do campo de batalha em que todos morreram. Dúbio de caráter, ele rompeu com os tempos e nunca como hoje se fez tão presente no meio da multidão. Ele exorbita na candura e distribui otimismo. Ao visitar um doente conta histórias de doenças muito mais cruéis, mas que tiveram cura. Para ele, as novidades já ficaram velhas, pois já sabe de todas, inclusive com seus detalhes. Quando das campanhas de arrecadação, geralmente prontifica-se como tesoureiro. É aquele tesoureiro que sempre aparece com despesas extras na hora da prestação de contas, pois alguma coisa pode ter escorregado para seu bolso. Entretanto é honesto acima de qualquer suspeita, apregoa.

A Literatura também é povoada por esses personagens cremosos. O José Dias do "Dom Casmurro" é um agregado cremoso na residência de Bentinho. Ele incentiva o garoto a ingressar no Seminário já com a intenção de dominar a cena familiar do futuro padre. Esses agregados também foram figuras palacianas que foram ficando na mama das tetas do poder e terminaram por se dar bem. Eram maleáveis e desfilavam pelos corredores das cortes como uma serpente doméstica, aparentando inocência. Nas guerras, nunca passaram de escudeiros, nas cavalgadas preferiam segurar as alimárias, antecedendo a partida. São bons nos aplausos e efusivos nos apertos de mãos e nos vivas.

O cremoso é contrito nas orações das grandes cerimônias religiosas. Gosta de ser sacristão, para fazer a coleta dos óbolos e para a ajuda na hora da comunhão com a patena na mão e o rabo do olho nos decotes das devotas. Só gosta de criança quando está diante de adultos. Nessas ocasiões se derrete em mesuras aos bebês. Por falar em derreter, essas figuras são pródigas em afetações. Choram quando a ocasião manda, e não o coração. Gargalham sem ter entendido a piada. Disfarçam diante das gafes, persignam-se o tempo todo e são exímios nas interjeições. Não há tempo ruim para o cremoso. Ele ultrapassa as estações e as expectativas, pois tudo faz para impressionar, tudo faz para derreter-se.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 09/09/14.


 

2 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

תגובות


bottom of page