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O fluir do murmúrio

Batista de Lima


Escrever poemas é deixar fluir os murmúrios que pesam no nosso existir. Esses murmúrios que emergem do nosso ser podem ser chamados de inspiração. Infelizmente há quem diga que não há inspiração, que tudo em poesia é transpiração. Nesse rol podem-se colocar os mestres da poesia: João Cabral de Melo Neto e Manoel de Barros.

Talvez defendam essa ideia por não terem tido que transportar murmúrios. Esses murmúrios estão latentes dentro da gente. Estão bem guardados, mas quando se assanham a gente perde o controle de suas ações e eles explodem na nossa superfície.

São alumbramentos que os sentidos captam e o espírito transfigura. Para isso é preciso que nossas janelas da alma estejam sempre abertas às investidas do nosso entorno. São coisas que nos chegam montadas nas suas infâncias.

É preciso também que nos armemos de uma nossa infância para que as outras que nos rodeiam caiam nos nossos chamarizes. Esse fenômeno se torna mais comum entre aqueles que olham o mundo com a ternura dos princípios.

É olhar para as coisas nas suas inocências. É conseguir retirar do que foi transformado, uma existência primeira. E para isso é preciso saber que tudo que existe retém uma existência primeira que grita para ser libertada. Mesmo que se feche ao mundo externo, o poeta ainda pratica sua revolução. Ela se processa na linguagem. Quando a poesia flui, ela sempre vem montada numa linguagem de rebeldia. É preciso que as palavras, sobre as quais se monta o poema, venham fora do controle social. Elas precisam fugir do nicho em que são colocadas. As palavras precisam, na poesia, eliminar as distâncias entre o pensar e o dizer.

Se essa distância for grande vai refletir na frase. E as frases longas esticam os braços como se estivessem se afogando. Só a pontuação pode lhes salvar. Pontuação é ritmo, é balanço. Balanço é sinal de vida.

Essa vida só brota se as coisas forem vistas de novo. Esse de novo, com um novo olhar. É preciso rever, reinventando as coisas, encurtando a distância que nos separa de cada ser.

Nessa aproximação íntima é possível extrair a essência de cada coisa. Nós vivemos afastados das essências. Apenas quando acontecem fenômenos que nos chamam a atenção, é que despertamos para o sentido daquilo que explodiu em essência. Por isso que o poeta fica a mexer com as reentrâncias das coisas. Dali, das surpresas que descobre, dos alumbramentos de que se acomete, brota a matéria-prima da sua poesia. Um gesto apenas, às vezes uma lufada de brisa com cheiro de terra molhada podem lhe proporcionar o fenômeno poético.

Só fustigando a carne do mundo é possível arrancar-lhe os murmúrios. Há muito barulho retido por trás do silêncio de cada coisa. O poeta busca esse barulho através do alcance de sua percepção. Ele tem o mérito de circular do mundo vivido ao não vivido com a mesma desenvoltura, sem medo da aventura de ir em frente. Isso, no entanto, não acontece com o cientista, que calcula todos os riscos do próximo passo. Tanto calcula que termina por perder a essência escondida na estrutura profunda das coisas. O poeta, ao contrário, mergulha sem se preocupar com a profundidade que vai recebê-lo. Se quebrar a cara em algo raso, é motivo para descobrir o murmúrio do insucesso.

Outro aspecto que chama a atenção no ato poético é o que diz respeito à sua expressão verbal. O fazer do poema é um exercício verbal. Começa que palavras são insuficientes para arrematar das profundidades o verdadeiro murmúrio que foi captado. Daí a necessidade da metáfora, mesmo se sabendo que a essência pescada não emerge por inteiro. Não basta, pois, captar a essência se sua expressão não valorizá-la. A linguagem comum é um acinte diante do alumbramento de quando captamos o poético. Por isso defendemos que o tratamento linguístico seja produto de um aprendizado.

Há quem diga que poesia se sente, poema se faz. Se faz o poema com a estrutura de uma edificação, com todo o aprendizado anterior, não se concebe que alguém queira ser poeta se não estudou poetas outros. A leitura é o melhor aprendizado.

Se tentamos captar a forma como os murmúrios alheios se projetam na fala poética do outro, estamos adquirindo intertextualidades. Infeliz, pois, quem não demonstra intertextualidades. Significa que não houve estudo, não houve leitura, não houve outridade. A leitura é um veículo para se alcançar a alteridade tão necessária no mundo poético. Ingressa-se nesse mundo sempre em companhia. Quanto mais fôlego dessa companhia, mais profundidade pode ser alcançada, mais murmúrios serão ouvidos.

Daí a importância de se lerem os bons poetas, os excelentes caçadores de murmúrios. Sentimento é uma coisa, percepção é outra. Desconfiar é preciso; cismar, muito mais. A desconfiança é que provoca a curiosidade. Essa curiosidade só se satisfaz com a leitura. Leitura não é apenas de livros, é também de coisas. Podem ser coisas culturais e coisas naturais que nunca foram tocadas pelas mãos levianas dos transformadores. Escreve-se bem sobre um rio quando o tocamos com as mãos da inocência. Escreve-se melhor ainda, quando nele se mergulha com as asas de um anjo e o fôlego de um peixe.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 28/10/14.


 

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