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O engenho e a arte de Hélio Oiticica


Batista de Lima



A máquina do mundo move-se em estridente silêncio nos altos do prédio da Reitoria da Universidade de Fortaleza, onde o Espaço Cultural Airton Queiroz abriu suas portas à turbulência do engenho e da arte de Hélio Oiticica. Claro enigma permeia estrutura, corpo e cor. Significante e significado se emparelham transgredindo a ordem natural dos signos. Difícil não lhe atribuir um novo rótulo diante de tantos que já lhe impingiram. Anarquista, neoconcretista, tropicalista, estruturalista, socialista e muitas outras faces deram para seu engenho. Ele, no entanto, se põe e se expõe multifacetado e corajoso diante dos sentidos de quem o visita. É preciso senti-lo presente e tocá-lo na exposição, para perpetuá-lo.

"A máquina do mundo se entreabriu / para quem de a romper já se esquivava / e só de o ter pensado se carpia. / Abriu-se majestosa e circunspecta, / sem emitir um som que fosse impuro / nem um clarão maior que o tolerável". Assim disse Drummond em 1951 quando criou sua "Máquina do Mundo". Parece que previa o surgimento, alguns anos depois, da arte de Hélio Oiticica. Entretanto foi Ferreira Gullar quem mais se aproximou de Hélio, quando o Neoconcretismo carioca reagiu ao Concretismo paulista. Mas a pátria do artista não tem limite geográfico e esse artista extrapolou fronteiras com uma nova visão de arte, uma arte participativa, em que artista e espectador interagem.

Hélio Oiticica viveu e contribuiu para um momento singular para as artes brasileiras. Literatura, Concretismo; Música, Bossa Nova e Tropicalismo; Arquitetura, Brasília e o Plano Piloto; Teatro de Arena, José Celso; Cinema, Glauber Rocha; todas essas tendências se deram as mãos. Essa geleia geral foi uma forma também de reagir a um momento de exceção na política brasileira. Era um momento em que a participação popular nos destinos da nação não existia. Daí uma arte interativa, um teatro em que o espectador virava ator, uma exposição de arte em que o visitante participava da obra exposta. Oswald de Andrade foi revisto com seu antropofagismo. Era preciso degustar a arte.

Essa degustação tornou-se resultado de uma apreciação em que todos os sentidos passaram a ter sua função. A deglutição Oswaldiana continua na arte de Hélio Oiticica. Daí o surgimento de uma face política do processo criativo, a exposição como uma grande urna que faltava nas ruas para a manifestação das pessoas. Ali abriu-se uma maneira de manifestar o inconformismo que não é apenas na estética do autor, mas uma forma social de participação. Sua arte é uma reação à passividade. Por isso seu viés político ser chamado de anarquista, talvez por uma tradição familiar. Ser neto de José Oiticica é rotular-se de anarquista, mas é só isso. Os dois são geniais nas suas manifestações, mas não são iguais.

A metáfora da obra de Hélio Oiticica é aquela que se afigura no dilúvio. Sua arca parte de um porto e se deixa levar por quem a conduz por um trajeto construção. Só há partida, pois o resto é continuidade durante a qual qualquer passageiro tem a função de construir uma chegada que pode nunca acontecer. Daí ele se perpetuar como timoneiro de uma navegação que não tem fim. Não seria pois despropósito lembrar Guimarães Rosa que deixou o Grande Sertão para ser construído pelo leitor. Ao deixar o oito deitado no final das Veredas que ele construiu, abriu as portas para o infinito da construção lectural. Assim fez Hélio Oiticica, construiu uma grande vereda que é um convite para o espectador se tornar construtor.

Propositalmente, a estética oiticica caracteriza-se pelo inacabamento. Assim como Gullar e Zé Celso continuam aí vivos e atuantes na sua geração, Hélio continua no mesmo patamar. Não é apenas sua arte que continua em construção, mas ele próprio continua pulsando. Sua exposição no Espaço Cultural Airton Queiroz é sua visita primeira ao Ceará, e ali ele está para dialogar, para ser tocado, sentido, questionado e continuado. Ai, pois de quem falar em morte, já que a vida lateja e grita e até nos veste com seus parangolés. Suas criaturas e criações suam e sangram no contato com nossos corpos porque são o corpo do artista que nos abraça nesta visita a nossa terra.

A principal vitória desse artista é conseguir vencer o tempo. O Cronos acorrentado se debate, mas não passa entre Bólides, Núcleos, Penetráveis, Relevos Espaciais e Bilaterais. Até o olhar do expectador possui sua via de mão dupla, seu retorno no olhar do artista, o diálogo das almas. A poética se instaura muito mais nessa troca dinâmica, flerte, do que na estática tradicional que se estabelece em outros artistas. O salto da cor para o espaço é produto da escalada da luz para que a vida se produza. Esses três elementos criam uma estrutura em que prevalece uma arquitetura da abertura. Uma casa só portas se ergue como agasalho e acasalamento em que o espectador fica a parir dimensões.

Por fim verifica-se que a arte de Hélio Oiticica não é apenas para ver, é para sentir em todos os radares que o espectador transporta, os sentidos e o que está além dos sentidos. É o sensorial que prevalece. São montagens que se transfiguram. Os quadros saem de si próprios e circulam através das cores, eliminando a distância entre estática e dinâmica, numa estrutura flexível. Daí que ao afirmar que tudo o que tinha feito era um prelúdio do que estava por vir, esse artista colocava em nossas mãos posteriores o destino da continuidade. Visitar sua exposição é impregnar-se dessa responsabilidade. Portanto não se sai do Espaço Cultural Airton Queiroz da mesma forma como se entrou. Saímos dali como criadores alimentados de fomes.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 23/02/2016.


 

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