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O engenho de João Lemos


Batista de Lima



O construtor de um engenho precisa entender de canavial, moenda e fornalha. Precisa entender também de parol, caldeira e gamela. Precisa ainda ser especialista em garapa, mel e rapadura. Como se vê, até parece que em termos de moagem, todos os elementos são triádicos. Essa mania de tudo vir em trio vai mais além quando se constata que são três os cortadores de cana, três cambiteiros e três tombadores. As caldeiras do caldeireiro são três: a resfriadeira, a limpadeira e a esquentadeira. Os trabalhadores do mel são: o caldeireiro, o corta-mel e o mestre. Uma boa moagem dura em média três meses. Essas curiosidades semióticas evoluem a partir da observação do mundo dos engenhos.

Para entender esses signos adocicados é bom que se leia esse mais recente livro de João Gonçalves de Lemos. O título é “Convergências”. É uma coletânea de textos esparsos, da RDS Editora, que em 192 páginas se apresenta como uma das boas publicações cearenses de 2013. Como é uma seleta de seus textos publicados em periódicos, chamou-me a atenção aqueles que se voltaram para o resgate da memória de sua família e do povo de sua terra, do qual faço parte. Nessas memórias, destacam-se aquelas voltadas para a temática da rapaduridade. Somos meninos de engenho. Mesmo de engenhos diferentes, o panorama é praticamente o mesmo.

As memórias glicosadas de quem viveu em bagaceiras de engenhos têm sabor de tiborna e grudam, mas não desgrudam das almas cambiteiras. Por isso que o Engenho das Lages escanchou-se nos costados de João Lemos. É esse o motivo de seu retorno pela escrita. É a reconstrução de um paraíso que marcou sua infância. Aquele engenho, como dezenas de outros nas suas adjacências, fechou as portas e suas fornalhas chichilaram para sempre. O progresso aboliu a rapadura mas não extinguiu a rapaduridade. A rapadura, sendo sólida, dissolveu-se no tempo. A rapaduridade, sendo a tiborna da alma, impregou a saudade e acampanha os viventes dos canaviais. João Lemos não se livrou do cheiro do mel queimado.

Nessa crônica histórica do Engenho das Lages, a bagaceira “era o espaço para as reuniões, espécie de saraus, sempre nas primeiras horas das noites, nos períodos de moagens”. Esses saraus geralmente eram observados, ao largo, pelos bois que durante o dia moviam o engenho. Eram bois familiares, tratados com carinho e que sempre estabeleciam relações de afeto com seus donos. Daí que o engenho a boi trazia uma atmosfera romântica que não se repetia quando passava a ser a motor ou a energia elétrica. Até os nomes eram suaves.

Eram Namorado, Canário, Bem-te-vi, Navegante, Surubim, Chuvisco, Rapé, etc.

João Lemos, no entanto, não fica apenas nesses temas de engenhos. Traz crônicas sobre a festa do padroeiro, São Sebastião. É então que ele nivela os dois grandes acontecimentos anuais da terra natal. A moagem, a partir de julho, e a festa do padroeiro, em janeiro. Ali na vila, que se chamava São José, depois Mangabeira, os donos de fazendas da região possuíam suas casas, no lugarejo. Nos tempos da festa do Santo, todos levavam as famílias para as novenas e passavam a temporada em suas casas da rua. A população duplicava e o comércio também. Havia o hasteamento da bandeira, a banda cabaçal, o foguetório, os partidos Azul e Encarnado, as barracas e a procissão.

Outro momento importante desse livro de João Lemos é quando ele trata do “Jornal de Letras”, dos irmãos Condé. Esse jornal surgiu em 1949, no Rio de Janeiro, criado pelos irmãos João, José e Elysio Condé. Um jornal exclusivamente literário que por mais de quarenta anos mudou a vida literária brasileira. Publicando, ao longo desse tempo, os melhores escritores nacionais, só a teimosia desses irmãos, especialmente Elysio, poderia mantê-lo funcionando. Por isso que João Lemos dedicou dois textos a esse periódico, e aos momentos de amizade que privou com os três destemidos irmãos literatos. Afinal o autor residiu por muitos anos no Rio de Janeiro.

Ainda com relação ao “Jornal de Letras”, João Lemos volta a se reportar a sua longevidade, graças á persistência dos Condé, quando escreve texto longo sobre “Imprensa Alternativa”. Nesse artigo ele também se refere ao alternativo “O Catolé”. Esse jornalzinho, idealizado por Dias da Silva, circulou por 15 anos, de 1978 a 1993. Em 107 edições, publicou escritores locais e de outras pátrias, chegando a vários estados brasileiros e a alguns leitores de outros países. Não fosse a persistência de Dias da Silva e a participação de escritores variados com suas matérias, inclusive João Lemos, esse jornal não teria sobrevivido. Por isso que o texto que trata de “O Catolé” se reveste de significativa importância.

Depois de perpassar essa variedade temática, nessa coletânea de crônicas de João Lemos, o leitor fica curioso para conhecer esse autor e suas motivações temáticas. João Gonçalves de Lemos nasceu no Engenho Lages, aos 15 de agosto de 1926, filho de Thomaz Gonçalves de Lemos e Ana Izabel Gonçalves Mendonça Sales. Segundo seu biógrafo, Dimas Macedo, em torno do citado engenho “chegaram a existir 40 pequenos prédios.

Dos três casamentos de seu pai nasceram 29 filhos. Suas primeiras letras foram aprendidas em casa, com as irmãs e depois com as professoras da Vila Mangabeira, Vicência Mota e Maria de Oliveira Dias. Em 1942 passou a estudar em Ipaumirim, no Colégio XI de Agosto, dirigido pelo Professor Francisco Vasconcelos de Arruda.

Depois disso, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde cursou Administração e depois Direito. Por fim cursou o Mestrado em Administração, na Fundação Getúlio Vargas. Voltando ao Ceará, aposentou-se como professor da Universidade Estadual do Ceará. Agora, em profícuo ócio produtivo, retorna para o Engenho Lages e reconstrói aquele patrimônio da infância, através dessa coletânea de crônicas com reminiscências afetivas. Para as novas gerações da numerosa família Lemos, através da escrita, João Lemos recolocou os bois na almanjarra e botou o velho Engenho das Lages para funcionar.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 07/01/14.


 

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