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O divã de Airton Monte

Batista de Lima



Psiquiatra, contista, poeta, cronista, boêmio, marxista e ateu são apenas algumas das faces de Airton Monte. Nós nos conhecemos em 1969, na Casa de Juvenal Galeno, numa noite de sábado. Era uma noite para falarmos de poesia, mas encalhamos na ditadura, que naquele momento se fortificava no AI-V, nascido no dezembro do ano anterior. Éramos garotos que amávamos os Beatles e os Rolling Stones e chorávamos a Guerra do Vietnam. Airton era o mais afobado com tudo isso. Mas tinha uma pequena alegria, o Ferroviário, seu time do coração, havia sido campeão cearense de 1968.

Finda essa primeira fase, no Clube dos Poetas Cearenses, fomos nos encontrar em 1979, quando formamos o Grupo Siriará. Aquele pseudônimo Armon, com que ele assinava alguns textos do início, havia ficado para trás. Agora era um psiquiatra, tinha emprego fixo e havia casado em 1975. Nada disso, entretanto, modificara sua verve poética, tampouco sua vida boêmia. Virávamos a noite no Estoril, no Quina Azul, no Barnhambi e em outros logradouros em que fossem possíveis um bom papo, copos na mesa, cigarro, bebida e algumas amigas "cabeça". Lutávamos pela volta do irmão do Henfil e outros retornos.

O Siriará esfacelou-se por conta das alianças abençoadas pelos padres e dos empregos que nos deram para sustentar as proles. Bater ponto e cuidar das crianças chegadas foi o destino de muitos. "Nego Airton" foi mais um epíteto que lhe deram nas boemias da Gentilândia. Ele, um pouco mais apascentado, empunhava Dona Sônia, a Bárbara e o Pablo. Era família, mas o boêmio irreverente continuava vivo. E o escritor estava mais fértil. Vieram "Memórias de Botequim", 1980; "O grande pânico", 1979; "Homem não chora", 1981; "Alba Sanguínea", 1983; "Rogaciano Leite Filho", 2002; "Moça com flor na boca", 2005; e "Bailarinos", 2010. Estava aparentemente acalmado o homem, com filhos e livros.

Aparentemente, pois "Toim", como era chamado na "Mansão dos Monte", da Dom Jerônimo, apenas mudou de cenário, indo pastar em outros roçados: o

Ideal Clube, o Clube do Bode e o Raimundo dos Queijos. Ganhou uma coluna diária de jornal em que continuou a cantar a Fortaleza de seus amores. Não perdeu a irreverência, não baixou a cabeça para as elites. Certa feita tentaram colocá-lo na Academia, e de véspera ele preferiu ir viver na companhia do seu guru Alcides Pinto. Lá, nessa sua viagem, também encontrou Rogaciano Leite Filho, Antônio Girão Barroso e Jáder de Carvalho que haviam partido antes.

Aírton Monte sempre fora surpreendente. E a mais recente surpresa que me causou foi agora, nessa 12º Bienal do Livro de Fortaleza. Para surpresa, lá estava Aírton, revisitado, estudado em todos os ângulos por uma jovem acadêmica de jornalismo que na hora de apresentar seu trabalho de conclusão de curso, preferiu escrever um livro reportagem com o instigante título: "Aírton no divã, várias faces do boêmio". Só agora em 2017 encontrei esse belo livro que foi lançado pelas Edições UFC, em 2011. São coisas do Ceará, bons livros são lançados e a gente não toma conhecimento.

A autora é Anamélia Sampaio, que coloca, desta feita, Aírton Monte do outro lado da terapia. Ele é que está no divã, e essa garota extrai dele, numa catarse corajosa, uma fala, em que ele revela facetas que até os que lhe eram mais próximos não tinham conhecimento.

Todos os que com ele conviveram são postos ao seu lado, o que torna o livro como uma reunião de terapia de grupo, e vão colocando, na construção de seu perfil, ingredientes novos que tornam Airton, uma legendária figura curiosa. O livro, mesmo sendo originário de um trabalho de pesquisa de término de curso, não traz aqueles salamaleques da ABNT, nem deles precisa.

Anamélia, em vez de nos encher de referências bibliográficas, metodologias, anexos e resumos, preferiu nos presentear com personas. Primeiramente o próprio Aírton, depois seus familiares, seus amigos, as mulheres, a cidade, os bares e a literatura. Termina que tudo isso é o próprio Airton. Seus amigos ao longo dos anos são Urico Gadelha e Chico Niwton, depois, os literatos: Rogaciano Leite Filho, Jackson Sampaio, Carlos Emílio Correia Lima, Nilto Maciel, Adriano Espínola e Márcio Catunda. Numa leva mais adiante, Carlos Augusto Viana e José Teles, e em momentos que já vão mais longe, Antônio Girão Barroso e Alcides Pinto.

Aírton Monte era composto de uma textura que envolvia seus amigos, suas memórias futebolísticas, a família, a boemia, as mulheres e seu narcisismo intelectual. Amava o Botafogo, não esquecia Mané Garrincha e falava ligeiro porque tinha muito o que dizer. Nunca se disse completamente. É preciso, portanto, que outros pesquisadores como Anamélia mexam com sua vida, porque há sempre algo cativante a mais por dizer. Essa de ateu franciscano eu não sabia. Só com esse livro eu soube ser ele devoto de São Francisco a quem chamava de Chiquinho, o socialista santo. Daí que sempre o respeitei, como lhe dizia. Sempre respeitei os mais velhos. Ele nasceu no dia 16 de maio e eu no dia 17. Ele era mais velho do que eu, um dia.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 09/05/2017.


 

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