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O direito à fila

Batista de Lima



O que mais me apavora, ao me tornar sexagenário, é perder o direito à fila. É ser discriminado e ficar vendo a juventude ao largo, naquela fila enorme, tortuosa, oblonga e vagarosa. Como é gostoso estar no meio dos jovens e trocar idéias, falar de colesterol, glicemia, próstata, celulite e estrias, e ouvir lições de piercing, tatuagens musculatura e grife. Misturar cheiros de perfumes maturados com aqueles suores que orvalham os vinte anos. Mas não, inventaram uma lei que nos separam da juventude. Uma das carências do idoso é a falta de alguém para conversar. Nada melhor, pois, que aquela fila enorme diante de um caixa lento e preguiçoso para que se demore hora e meia de boas conversas. Falar de tudo com o jovem que nos cerca, falar com orgulho do neto universitário, da cidade bela mas violenta, do aquecimento global e de vez em quando entabolar um ´no meu tempo´, o que inicia bela lição de história para aquela jovem ou aquele jovem glabro, todos carentes de conhecimento. Quanta utilidade de um professor aposentado, transmitindo seus conhecimentos em plena fila. Dando aulas para essa juventude ignara. Mas não, separaram as gerações. Já não basta a solidão que se tem em casa, parado, sozinho e amolecendo as carnes em busca de um fim que se aproxima célere. Quanto mais paramos, mais corremos para um fim sem volta. Quantas calorias não se queimam em duas horas de fila. Quanto rejuvenescimento em estar no meio da garotada. E se ninguém quiser me ouvir, que tal levar um bom livro para uma leitura na fila. É um dos bons locais para se ler. No tempo que havia o BEC dos peixinhos, na Barão do Rio Branco, consegui ler toda a obra do Dalton Trevisan em gostosas filas intermináveis, em dia de pagamento dos professores do Estado. No entanto, perversamente diminuíram as filas, inventaram a lei dos quinze minutos de espera. Que horror! Quanta saudade do tempo em que chegava minha hora de ser atendido e eu voltava para o fim da fila para, na minha leitura, ver se Riobaldo descobria que Diadorim era mulher, no roseano Grande Sertão: Veredas, no antigo BEC da Bárbara de Alencar. Além de tudo isso, ficar em pé é um exercício. O poeta Costa Matos justifica sua vitalidade pelo fato de não se sentar. Segundo ele, o homem sentou, morreu. Ficar em pé é angariar saúde. A inquietude é vida. Exemplo são os dois poetas: Alcides Pinto e Jorge Tufic, todos passados dos oitenta e esbanjando saúde mais que muitos garotos trintanistas. Não tenho nas retinas, imagem de Alcides sentado. Daí, o bem que faz uma fila. Por favor, não me coloquem numa fila de idosos. Aliás, uma fila de idosos vira fila de velhos. Por isso vamos misturar, estamos no tempo da diversidade. Conversemos também sobre Canoa e Jeri, forró e have. Se o garoto quiser, falaremos sobre a novela ´O bem amado´, sobre James Dean e Anselmo Duarte. Podemos também ouvir lições de futebol, BBB, orkut e site. Como é triste o idoso se sentir velho ao ser colocado numa fila segregacionista sob a observação de jovens esbanjadores de saúde. Como faz pena ver o Mascarenhas, meu amigo militar aposentado, com pouco mais de sessenta janeiros, depois de correr hora e meia pela manhã, malhar uma hora à tarde e nadar uma hora à noite, ter que pegar uma fila de idosos onde só se fala em doenças. Como é triste ver o sonho de Margarida, de exibir para suas amigas de fila, a barriga de quatro meses de gestante. Mas não, ela tem que ficar lá no meio dos idosos. Ela não pode contar para as suas amiguinhas de cá, sua experiência de gestante de primeira viagem. Ela tem que ouvir histórias de partos normais, com parteiras entesouradas, cheiros de alfazemas pelos cantos da casa, banho morno aos quinze dias de resguardo, com água de casca de aroeira. Ela tem que ficar dizendo com riso amarelo para aqueles olhos aboticados que não sabe quem é o pai da criança. Na fila grande, não, todo mundo quer passar a mão na sua barriguinha, sugerir um piercing no umbigo estufado. Vamos pois fazer greve de fila de idosos para rejuvenescermos. Vamos respeitar aquela juventude cheia de afazeres, no corre-corre de encontrar um lugar ao sol, com um chefe chato esperando no emprego. Que tal oferecermos nosso lugar para aquele quarentão estressado com mil coisas a fazer? Nós sessentões estaremos o dia todo de folga, aliás, a vida toda. Se a pressa é inimiga da perfeição, temos que dar lições de perfeição. Temos que dar lições de paciência a esses jovens apressados, oferecendo a eles nosso lugar na fila. Há também a questão da educação. Dar, para a juventude, exemplo de como se pega uma fila. Mostrar como curiosamente as filas crescem para trás e que quanto mais vagarosos e mais pacientes, mais elas duram. Assim, pois, como a fila, a vida também quanto mais vagarosa e sem pressa, mais será duradoura. Temos pois de aproveitar bem as filas para tirarmos delas, lições de vida e durabilidade.

 

29/01/2008.

 

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