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O difícil primeiro livro

Batista de Lima



A gente não esquece a primeira vez em que foi a uma livraria e, espontaneamente, comprou o primeiro livro para o deleite da leitura. Lembro-me que minha primeira vez foi no Crato. Fui à livraria de Ramiro Maia e comprei um livro das Edições de Ouro que trazia dois romances no mesmo volume. Eram “Homens e escravos”, de Leon Tolstoi, e “Fumaça”, de Ivan Turgeniev. Li com gosto esse livro no internato do Seminário Apostólico da Sagrada Família. Ainda hoje o guardo como lembrança especial, não pelo conteúdo das narrativas, mas pelo valor simbólico da aquisição na adolescência. Outra emoção forte foi a publicação de meu primeiro livro, “Miranças”, em 1977. Paguei do meu bolso a uma gráfica de fundo de quintal, mesmo ajudando na montagem dos linotipos, sujando as mãos de tinta. Valeu a pena. Afinal é essa uma emoção de que se privam algumas pessoas que às vezes escrevem bem, possuem material guardado para editar um livro, mas nunca conseguem executar esse feito de glória. Conheço pessoas que são possuidoras de talento, mas que não encontram portas abertas nas editoras para editar seus textos. Um desses escritores se chama Ernane de Sousa.

Ernane de Sousa no seu endereço eletrônico possui o acréscimo de um Vitorino, que acredito formar seu nome completo. Pois esse jovem me procurou no estacionamento da Universidade em companhia de um amigo professor e me passou os originais de uma coletânea de poemas com o título “Frágil e concreto”. Na oportunidade falou da vontade de editar o material em livro, e da impossibilidade de arcar com as despesas de edição. Depois de ler o material, verifiquei que o mesmo é merecedor de publicação. A primeira parte do textos ele nominou de “Frágil”, e realmente é de uma fragilidade maior que a segunda parte que ele nominou de “Concreto”. Mesmo assim há bons momentos poéticos. E essa é uma das razões para publicação.

Essa primeira parte é mais lírica, mais confessional. Ele começa, sempre em primeira pessoa afirmando: “antes de te ver / já teria te sonhado / já teria te desenhado na minha gasta imaginação”. Mais adiante ele reforça: “Sempre que o amor toca na pele / incendeia / novas chamas / nascem”. Já no poema “Fogo de palha”, ele vai mais longe na sua literariedade: “Foi só fogo de palha nas nuvens da tua boca”. Toda essa primeira parte é marcada pela manifestação do eu lírico, com uma linguagem focada na emotividade. Essa característica está geralmente presente nos primeiros arroubos poéticos da maioria dos jovens escritores. Ernane não se preocupa em revelar suas emoções de forma poética.

Na segunda parte da coletânea, “Concreto”, Ernane Sousa, mesmo se mantendo lírico, consegue apresentar uns poemas de metáforas sazonadas. Há um amadurecimento do autor sobre sua produção da primeira parte. Ele já inicia com esse achado poético: “Nas ruas feridas do meu coração / tem um punhal / escrito vida”. Além de ser verso mais cortante, incisivo até, ele já dá o primeiro passo, para logo em seguida galgar a terceira pessoa do discurso, o que o alça a uma universidade necessária. Nesse momento ele se refere a sua casa: “o que chega mais / próximo do nada / é minha casa”. Nesse caminho ele chega a concluir que “o mar deságua na fala”. Poderia até dizer que tudo deságua na fala.

Nesse caminho, o poeta ainda arrisca incursões pela metalinguagem quando chega a afirmar: “Eu quis brincar com as palavras / elas não aceitaram brincar comigo / Escrevi e saí / Depois de algum tempo / encontrei as palavras / escritas, mudadas, juntas e misturadas”. Como se vê, além de questionar o poder comunicativo das palavras, o poeta comprova que as emoções, muitas vezes, deixam de ser reveladas como realmente são, por falta da expressão adequada, e por limitações do código linguístico. Daí a necessidade da metaforização da linguagem poética, pois através da linguagem figurada é possível se superarem limites que a língua possa apresentar. Por outro lado, a metalinguagem possui o mérito de levar a linguagem a questionar a si própria. Essa é umas das facetas mais modernas da arte poética.

Com relação à metapoesia, quando também o poema fala de si próprio, o poeta revela: “Em minha poesia faltam / pernas, braços / corpo, alma...” Mais uma vez é mostrada a limitação do poema para contemplar tudo que seu autor transporta. Essa lucidez poética leva a outros a momentos poéticos em que o eu lírico revelador confessa: “ontem eu perdi três poemas / Um logo de manhã quando meu pai e eu bebíamos café / O outro me revoltou por perder / Em esquina segurando sacolas / Aos dedos me saíram as beiradas do poema / O pior que perdi foi o último.” Em outro momento ele impressiona ao dizer: “Estou com medo do passado que não passa / Abro as portas de minha casa caída / Levo meu prato à mesa / e vejo minha vida ser devorada de uma garfada”.

O último poema da coletânea que me foi encaminhada é uma homenagem ao poeta Mário Gomes. O Mário já pertencia ao Clube dos Poetas Cearenses bem antes do nascimento desse poeta iniciante. Acontece que o estilo de vida do poeta da Praça do Ferreira, é motivo de curiosidade de todos nós. Mário Gomes não apenas produz poesia, ele vive uma vida de poesia. É o último byroniano dos nossos tempos. Totalmente dionisíaco é a reencarnação de Joaquim de Sousa e Barbosa de Freitas. Como diz Ernane, Mário Gomes “anda em estrelas escoltadas por galáxias”. Esse seu tributo ao poeta da rua já faz parte de um espólio de Mário Gomes onde o que existe é só poesia.

Por fim é bom alertar os editores locais que Ernane de Sousa está aí com um calhamaço de bons poemas debaixo do braço. Cheio de vontades poéticas, pretende lançar seu livro e escrever outros. Até que o aconselhei, como faço com outros iniciantes, a começar por veicular textos em jornais alternativos, revistas e sites, como fazem muitos no início da vida literária. Acontece que esse jovem poeta é cônscio de sua capacidade criativa e tem certeza da qualidade de seu material. Por isso pretende sair logo em livro só seu. Daí que afirmo, após o que li, que nenhum editor se arrependerá por editá-lo. Ernane de Sousa é um bom poeta.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 26/02/13.


 

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