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O desmedulador Alan Mendonça

Batista de Lima


Difícil é a arte de desmedular as coisas. Afinal, é preciso, primeiramente, revirar a coisa, expondo suas profundidades, pois é lá em que se esconde a medula. É preciso que a estrutura profunda venha à superfície, para que a operação se realize. Acontece que, sendo palavras, os instrumentos dessa desmontagem devem ser usados com muita presteza, para não ferir a sensibilidade do verbo. Poucos conseguem essa cirurgia verbal. Só mesmo os bons poetas que conseguem mostrar as entranhas das palavras.

Um exemplo dessa desmontagem verbal é o que opera Alan Mendonça no seu livro "A desmedula da Seta". São 76 páginas de poemas editados pela Secult. É uma mistura de atrevimento verbal com ousadia desmedida. "O que procuro / é o que dorme com minha mãe todas as noites / e às vezes chega de viagem". Esses versos do livro começam já servindo de epígrafe para a apresentação de Jorge Pieiro. Nessa apreciação, Pieiro fala em "sensações", "carne da palavra", "metalinguagem" e "poesia de nervos à flor da pele". Desses termos, considero a metalinguagem como o mais apropriado. Talvez pelo fato de que o autor que conheci há tempos, cursando Letras na Uece, já tenha o vezo de mexer com as palavras. É como se realmente ele dissecasse a carne das palavras para extrair delas sustanças escondidas.

Outro também que faz uma leitura dessa poética mendonçante é o escritor Pedro Salgueiro. Na sua apreciação, Salgueiro se desnuda de sua condição de narrador e se põe como intérprete de uma poesia em que o autor antes de ver o mundo, procura ver a si próprio. É como se o artista primeiro tenha de se desmedular para depois sarjar o tumor da carne do mundo, através das coisas reviradas. Lendo esses dois críticos, chega-se à conclusão de que eles detectam em Alan Mendonça uma arqueologia em busca de uma essência nova de cada coisa. É como se o leitor precisasse de um sentido especial para uma escavação semântica que os comuns mortais não conseguem atingir.

Exemplo disso é "o homem a se perguntar por pés" ou "se dizer faminto de um bandolim", ou ainda "invasor de madrugadas, cujos olhos roubam versos de sua pele". Esse mesmo homem pode "juntar tempestades de dentro de uma gaiola de ouro, com a saudade esquecida em uma partitura". Vê-se daí que Alan, vez por outra, recorre à música ou a algo relativo a ela. Para ele, poesia é ritmo. E entre seus caracteres biográficos aparece que, além de poeta, é contista, cronista, dramaturgo, arte-educador, produtor cultural, e, principalmente, compositor. Por isso que alguns poemas do livro são letras de músicas já gravadas por conhecidos cantores.

Entre esses músicos parceiros estão, principalmente, Rogério Lima, Ronaldo Lopes e Liduíno Pitombeira. Daí que a musicalidade que evolui de alguns de seus poemas é resultante dessa intersecção entre verso e melodia. Dessa intersecção é que surge o ponto alto de sua poesia que é o ritmo. Esse ritmo consegue se incorporar nos seus versos mesmo que a guerra entre a estrutura de superfície e a estrutura profunda seja às vezes um "tambor alucinado". Por isso que "certas vezes em noite errada / a palavra não vem". A poesia não se transforma no verso porque muitas vezes o código linguístico é incompetente para transmitir a emoção contida.

Essa poesia contida traz "o zumbido imaginário do quase dito". E quando o verso vem à tona, "a palavra vem pelo ar, carcomida da maresia". Quando o poeta não diz, a própria natureza se encarrega de dizer por ele. Quando chove, são peixes que falam, sapos que cantam melosas canções cachoeiradas. Esse não dito o leva a desabafar: "Tenho saudade da palavra que não disse". Por isso que muitas vezes Alan Mendonça parte para a música como lenitivo para o suporte do não dito. O instrumento musical é a continuidade de seu corpo e de seu estro. "Um piano a puxar a lua pelo céu / como que por uma coleira de barbante / qual um louco a seu cachorro coitado". Com a música, ao piano, ele engana o silêncio e salva a poesia contida. Para salvar essa poesia contida, transportando-a do plano de conteúdo para o plano de expressão, Alan Mendonça usa bastante o recurso da metaforização. Entre as metáforas que mais chamam a atenção estão: "olhos amanteigados", "jardim recoberto de medo", "Teu cheiro perambulando pela casa", "Pego algo aqui e algum Dali", "Quem come da minha palavra morre" e "Esperança com falhas de reboco". Há também outros recursos como assonâncias a serviço da musicalidade: "Mas alguém anuncia súbitas coragens / aranhas nos arames das aragens". Essa musicalidade torna o poema propício a receber uma melodia e se tornar bela composição musical.

Alan Mendonça consegue segurar o leitor até a última página do livro. Ele surpreende a cada poema. Não é poeta de uma batida só. É realmente um desmedulador de palavras. Faz delas brinquedos verbais, revirando-as para, com sua curiosidade, desvendar o tutano de cada uma. Com relação à "seta", que aparece no título, o leitor deduz que é a palavra mirando um alvo. Esse alvo é a medula de si própria. É a palavra voltando-se para o seu interior. É a palavra metáfora como sintoma em busca de um real interior numa caminhada lacaniana em que a função sígnica é muito mais mostrar significados, independentes de significantes.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 10/03/15.


 

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