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O criador de corvos

Batista de Lima



Francisco Carvalho é um criador de corvos que mora na rua Francisco Lorda, no Bairro de Fátima, aqui em Fortaleza. Como nosso clima é mais propício a urubus do que a corvos, ele cria suas aves com alumínio. Não sei se a cor do alumínio combina com a negritude dos corvos. Também isso não importa muito porque seu artesanato não utiliza metais, e sim palavras. “Corvos de Alumínio” é uma coletânea de poemas inéditos de Francisco Carvalho, engaiolados num livro de 193 páginas, editado pela LCR Editora, em 2007. É preciso cuidado ao abrir o livro para não ser bicado pela criação do poeta. É que os bons poetas deixam cicatrizes profundas nos seus leitores contumazes. O livro começa com um prefácio desnecessário, de autoria de Hildeberto Barbosa Filho, tendo em vista que se refere a outro livro de Carvalho, no caso, “O Silêncio é uma Figura Geométrica”, de 2002. Passado esse pequeno empecilho, a gente finalmente pode se prostrar diante de ´quadrigas´, ´adagas´, ´conchas´, ´lápides´, ´aldravas´, ´serpentes´, ´corujas´, ´lagartos´, ´dilúvios´, ´abismos´, ´ostras´, ´ribaltas´, epitáfios´, ´pântanos´, ´centauros´, ´faunos´, ´aquários´, ´déspotas´ e ´pêndulos´. Esse vocabulário poderia ser mais extenso não fosse a importância das metáforas onde cada palavra se aloja. O poeta possui uma linguagem tão forte que só admite a leitura dos textos e não o comentário. Não há como se analisar bem algo tão enigmático. Talvez o ideal fosse uma transposição para o texto crítico das oferendas mais saborosas. Assim: ´seios de cambraia´, ´o âmago do aroma´, ´adaga de estrelas´, ´veias das lápides´, ´cordilheiras da noite´, ´espuma do paraíso´, ´mortalha dilacerada´, ´a nau do corpo´, ´dobras da insônia´, ´ossadas de navios´, ´entranhas do abismo´, ´ribalta de artérias´ ´centauro de alumínio´. São metáforas feito estilhaços que o leitor enfrenta com cautela para não sair dilacerado. A leitura desses poemas de Francisco Carvalho é um movimento cauteloso de equilibrista. É como escalar grotões de uma cordilheira ou andar de olhos vendados numa sala repleta de bancos de ferro. Além do mais há um permanente funeral suspenso nas cumeeiras dos versos. Esse tom elegíaco acompanha o poeta em toda a sua trajetória literária. Não há esperança em sua mensagem. Até ´o mar é um pássaro tombado´ e ´as horas são gotas de bronze´. Se falar de si, o poeta também assombra. ´Sou a sombra de um peixe de plástico/ expulso de um pântano para ser/ bailarino de Deus num aquário de vidro´. Há em Francisco Carvalho uma poética do vetusto. É algo soterrado pelo peso das eras mas que botou o pescoço fora desse pântano metafórico e pariu uma flor. Há um estranho poema no livro, desses de arrepiar os puristas em que ele mistura o tempo passado com o presente e sepulta a normatividade gramatical alienante. Talvez seja de toda sua trajetória literária, o momento mais desconcertante. É o poema ´Naquele tempo...´: ´Naquele tempo/ À flor da pele/ Jograis semeiam/ Versos de Homero. (...) - Naquele tempo/ Buquês de estrofes/ Ardem nas chamas/ Do purgatório. (...) Naquele tempo/ Os olhos das vacas/ Pastam relâmpagos/ Sobre as estacas´. Existe nos versos do poeta uma preocupação em redefinir os seres, extraindo deles uma outra significação. Quando se trata de conceito, ele promove uma reconceituação. É uma demonstração da rebeldia poética do criador terreno. Tudo é remodelável. E o material mais propício para essa transformação é a palavra. ´O mundo é o que fazemos das palavras´. Ao definir o poeta: ´O poeta é um pássaro selvagem/ que incendeia as marés´. Ou ao abordar os pássaros: ´...os pássaros/ não precisam de alvará/ para trafegar nas rodovias do céu´. Nesse modelo, outras revelações se sucedem: ´... a relva dos séculos/ cresce à luz da clarabóia´; ´Os olhos do amor enxergam/ de longe o que não se vê de perto´. ; ´...o beijo/ é a romã da língua´. ; ´A pálpebra é o telhado/ da casa do olho´. Há ainda outro caminho para se chegar a uma leitura crítica desses poemas inéditos de Francisco Carvalho. É só trafegar pelas intertextualidades que vão surgindo na leitura. Há uma influência pessoana, principalmente quando o autor se apresenta diante da sua pequenez. ´A vida inteira tenho sido ridículo/ como quem usa lentes bifocais (...) meu paletó comprado a preço módico/ num boteco onde se vende charuto´. Essas duas passagens, além de outras, do poema ´Ridículo à flor da pele´, nos remetem ao ´Poema em linha reta´, de Fernando Pessoa. A mesma intertextualidade está presente no poema ´Ridículo em Pessoa´. Outra intertextualidade de presença marcante em sua poesia está fundamentada no personagem Juliana Burgos, de Borges. Há ainda referências a Camões e um metapoema a Walt Whitman, chamado de ´Balada para um poeta barbudo´. É um elogio ao grande bardo, feito todo em estrofes de quatro versos. São duzentos versos que constituem o momento culminante do livro. São ´lavouras de centeio e de palavras (...) diante do vôo rasante dos falcões em chamas/ nas tardes promulgadas por sereias´. São ´pântanos de insônia (...) de um mundo seduzido pelo gótico´. Sabe-se pois que muitos poetas, de tanto se abeberarem em Whitman, terminaram marcados pela sua influência. Uma verdadeira geração passou por esse processo. Da mesma forma já há uma geração se abeberando de Carvalho. É comum encontrarmos poetas locais e dalhures com a mesma batida da poética desse monge das indagações. Sim, porque a leitura do seus poemas nos deixa perguntas que cruciam. O leitor é posto diante do efêmero e estirpado de qualquer vaidade. Suas indagações apunhalam. ´Que remorsos te afastam do esqueleto ancestral? (...) Que estrelas apagadas ressuscitam/ nos teus olhos de cristal? (...) Que falcão adormece em tua espádua?´ Dá a impressão de que o poeta, misantropo diante da sua criação, não gosta de ver sua poesia devassada por leitor despreparado. A poesia de Francisco Carvalho é um banquete servido apenas para escolhidos. Ainda bem que ele sempre me arranja um lugarzinho nessa mesa de iguarias. Ele não divulga essa culinária que elabora. Não se tem notícia de noite de autógrafo, de lançamento de livro do poeta. Ele produz seu pão do espírito e manda para os comensais que escolhe. Tanto ama a poesia que não gosta de dividi-la com outrem. Esquisito esse ciúme do criador na relação com sua criatura. Narcísico comportamento de um monocultor poético que produz eternas hortaliças no seu quintal, principalmente para consumo próprio. Ou seja, o poeta Francisco Carvalho criou seu céu e entronizou-se nele.

 

15/01/2008.

 

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