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O cordel do Conselheiro

Batista de Lima


Muito já se escreveu sobre Canudos. Afinal, ali se concretizou a maior tragédia brasileira. Calcula-se que em torno de 25 mil pessoas tiveram suas vidas ceifadas naqueles sertões da Bahia. O arraial destruído chegou a ter uma população de 30 mil pessoas o que o levou ao patamar de segundo maior aglomerado humano do estado, perdendo apenas para a capital, Salvador. Pois a destruição foi total, além da morte de 20 mil sertanejos e 5 mil soldados.

O mais famoso relato sobre o episódio é creditado ao livro "Os Sertões", de Euclides da Cunha, mesmo sabendo-se que sua visão dessa saga é de fora para dentro, já que o mesmo era repórter de "O Estado de São Paulo" e fez a cobertura da guerra do lado militar. Falta, no entanto, uma obra que conte a história vista do lado dos sertanejos, de dentro para fora. Mesmo não havendo algo desse nível, há relatos dos acontecimentos que são acreditados pelos leitores. É o caso, por exemplo, do cordel "A história de Antônio Conselheiro", de Geraldo Amâncio.

Geraldo Amâncio Pereira nasceu no sítio Malhada de Areia, no município de Cedro-Ceará, em abril de 1946. Há 47 anos canta ao som da viola. Já gravou 15 CD´s e há 17 anos apresenta um programa de cantoria, na televisão. Também pesquisa sobre cantoria, já tendo publicado duas antologias em parceria com o poeta e jornalista Wanderlei Pereira. Para transformar esse seu novo cordel em um produto de boa aceitação, ele publicou em livro de bela feitura, ilustrado pelo artista plástico Kazane. Assim é que se tem uma obra de arte sobre o sangrento episódio.

A sua pesquisa sobre a saga de Canudos vem apresentada em 283 septilhas, todas em redondilha maior, com rimas nos versos 2, 4 e 7 além de também rimarem o 5 e o 6. Ao todo são 1981 versos metrificados o que perfaz um contingente de 13.867 sílabas poéticas. Isso leva à conclusão de que foi um trabalho de fôlego, tanto na sua elaboração poética como na pesquisa que foi encetada, tendo em vista que os fatos apresentados, bem como o elenco de personagens são absolutamente fidedignos.

A Editora Imeph produziu esse material em 128 páginas, em 2010, trazendo como prefaciador o médico e poeta Luiz Dutra. Os comentários auriculares são do escritor Oswald Barroso. Enquanto Luiz Dutra se ocupa da apologia ao Conselheiro, Oswald faz a ponte entre o messias de canudos e o Geraldo romeiro do Padre Cícero Amâncio. São dois textos à altura da elaboração poética que analisam. É tanto que a certa altura do Prefácio o leitor é alertado para o fato de que o Presidente da República que era Prudente de Morais, nada tinha de prudente. Prova disso é que a destruição de Canudos foi um erro pelo qual ainda pagamos.

O êxodo rural e o consequente surgimento das favelas como cinturão sufocante em torno das grandes metrópoles são respostas à falta de perspectiva para a vida do rurícola. Canudos e Caldeirão foram fatais para a autoestima do sertanejo que tentava se fixar no campo. O nordestino é um retirante. Geraldo Amâncio é um retirante. Seu cordel, sua linguagem popular são uma forma de reocupar um paraíso perdido. Esse seu livro é um retorno e ao mesmo tempo uma reconstrução de um patrimônio olvidado. Afinal, todos que deixamos nossas terras de nascença temos algo de Conselheiro. Somos nômades numa permanente tentativa de fixação.

Foi por isso que Antônio Conselheiro, na visão do poeta, tentou plantar o homem na terra que o viu nascer. "Antônio tornou-se arauto / Dos sem pátria, dos sem nome. / Sabia ouvir o sussurro / Da multidão que não come". (...) "Ele queria que todos / Tivessem direitos plenos: / Ninguém tivesse demais, / Ninguém tivesse de menos". Essa visão de Geraldo Amâncio, que perdura ao longo do livro, é contrária à de Euclides da Cunha que via no Conselheiro e nos seus seguidores uma tendência para a vadiagem. O que coincide entre os dois é a cronologia dos fatos e a enumeração dos personagens, afinal, de ambos os lados houve personagens que se sacrificaram quando se sabe que outras soluções poderiam ter evitado o conflito.

Geraldo Amâncio cita e glorifica o estado maior dos conselheiristas. Esses guerreiros do sertão, comandantes da coragem, vão aparecendo ao longo da luta: Joaquim Coiam, João Grande, Pajeú, Vila Nova, João Abade e Antônio Beato. Também não deixa de enumerar os militares que guerrearam na luta contra o arraial, bem como a selvageria por eles praticada. Uns morreram em luta, outras protagonizaram a chacina final: tenente Pires Ferreira, major Febrônio de Brito, coronel Tamarindo, coronel Moreira César, capitão Salomão, capitão Vilarim, general Artur Oscar de Andrade Guimarães, general Savaget, general Barbosa, coronel Thompson Flores, coronel Joaquim Manoel de Medeiros, oficiais Tupi Caldas, Carlos Teles e Dantas Barreto, o cadete Cunha Lima, o marechal Bitencourt e o general Eugênio Andrade.

Esses personagens desenvolveram uma tragédia que ensanguentou o sertão nordestino e manchou a história do Brasil como um episódio fratricida que poderia ter sido evitado. Mas o ator principal foi Antônio Conselheiro, o mártir da esperança de um povo esquecido e abandonado. O Conselheiro é cantado por Geraldo Amâncio e pintado por Kazane também como "herdeiro do grande saber popular do homem sertanejo", nas palavras de Oswald Barroso. É preciso que outros cordelistas como Geraldo Amâncio se debrucem sobre outros personagens que ainda hoje dão suas vidas por causas principalmente de ocupação da terra, provando que essa guerra do litoral contra o sertão precisa chegar ao fim. Que o sertão possa virar mar, mas que não seja mar de sangue como Canudos se tornou.


jbatista@unifor.br

05/07/11.

 

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