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  • Foto do escritorBatista de Lima

O chão que me filia

Batista de Lima


Passarinhos dançam e cantam num mundo sem gaiolas, e dois lençóis bem lavados espantam o frio e as almas. Um cheiro de doce invade a tarde, com palavras em gergelim, e um homem, de chicote em punho, vai tangendo o abandono para amarrá-lo na pedreira. A tarde, porém, é curta, pois a manhã lhe comeu uma banda e a noite vai farejando a sobra. A palavra, que ali se diz, vai se sujando de terra, depois se banha nas águas que o açude guardou para ela. Há também palavras pedra que foram ditas outrora, e que entraram na mente de filhos, noras e netos e não sabem andar nas curvas nem utilizar atalhos.

O sol só anda em reta. Começa no quebrar da barra e mergulha com seu cansaço nas lonjuras do poente. Basta lá se despejar, para a noite trazer o medo carregado de morcegos, e almas despenteadas passearem pela casa. Um cachorro farejador com seus dentes afiados se recolhe ao alpendre, transportando reticências. As coisas em seus lugares vêm a mim recriminar, pois não vejo por inteiro, o olhar delas olhando meu olhar que não as vê. É que o silêncio ali presente, do qual desacostumei, vem sonolentar meus passos me convidando ao sono, pois o dia quanto mais pesa mais leve se torna a noite.

Lá nos cafundós da serra, há um ermo que se encravou, não sei se nasceu lá, ou de mim se transportou. Sei que de lá vem vento quente, trazendo cheiro de mato, cruza as águas do açude, com velhices despedaçadas de um tempo que não retorna. Há um velho no alpendre, pesado de suas sabenças, tecendo, com seus puídos, histórias de valentias. Acometido de sonhos meu pai vasculha o nascente, procura o trovão desgarrado e um pedestal no terreiro para esculpir o relâmpago. No poleiro há um galo famoso por britar o tempo com seu canto na hora certa. Tranças de sol costuram as nuvens, numa coxa de retalhos, em que pedaços do céu põem azul, nesses olhos que são teus, nos desejos que são meus. Meninas adolescidas, portando olhares mortiços, procuram substantivos entre as ripas do telhado para as festas padroeiras.

Algumas roupas bailam no ar, penduradas em cordas tristes e um touro de muitos filhos vem conferir no curral se o rebanho chegou inteiro. Nas biqueiras tem sete latas, viradas de boca pro céu, esperando que de noite, chuva venha torrenciar. Quando a chuva bate na telha, como verso em cantoria, não são só pingos de água se derramando do céu, são lágrimas dos que se foram nos olhos dos que ficaram. Alguns panos bem guardados, no mais fundo dos baús, são lembranças protegidas por cordas do coração. Quando caem primeiras chuvas, trazendo cheiros de terra e o mato vestido de verde faz a festa do terreiro são promessas de fartura, alegrias sem fronteiras. Nessas horas o gado berra sem respeitar os horários e o galo canta também, costurando o amanhecer.

Ali eu andei plantando touceiras de minha infância, escondi dentes de leite nas alturas do telhado, e depois de cantar mourão nasceram outros iguais. E os cordões umbilicais, que meu pai plantou de dez, cada um vive à procura na terra que os recebeu. Dos lados da casa tem dois açudes em silêncio, são duas lágrimas suspensas que São Pedro mandou do céu. Quando sangram eles choram uma canção desesperada, pois sabem que aquelas águas que se vão sem ter mais volta, um dia estarão faltando nos potes dos anos secos. Perto da casa tem um curral feito de cerca de varas, tecida de versos tristes que as vacas recitam à noite. Quem ouve essas poesias, daquelas mães que dão leite, é a lua espraiada no céu de toda noite. Ela também é materna, pois manda um claro leitoso, nas noites em que nasce cheia.

Quando nasci era santo, com cara de querubim, e a bagaceira do engenho estragou a santidade. Nas madrugadas de lua, com goles de garapa doida, ouvia histórias de coisas que só escondidos faziam. Eram homens de muito longe, que vinham mover moendas, montados nos seus pecados de camas e encruzilhadas. Na puxação de alfenim, vinham mulheres de longe, movendo dois morros na frente e duas dunas atrás. Era difícil não ver aqueles mundos soberbos que a manhã trazia com o sol e a noite despetalava nos sonhos adolescidos. Foi assim que ela brotou longe de métricas e rimas, ozanou os meus pecados, musicou certas palavras, me apresentou muitas musas que as transformei em versos que hoje é que me filiam.

Foi então que fui cismando a pouca voz daquele mundo, assim no caderno Avante, desenhava o que ouvia com poucas palavras sabidas. Procurei tudificar aquelas nadezas ouvidas e só depois concluí que ali só tinha grandezas. Foi preciso plantar cana, em folhas de papel em branco, pescar piaus e traíras no açude que carrego em qualquer lugar que eu vou. Quanto às árvores que circundam aquele chão que me filia, dão-me lições de saberes entre raízes e galhos. Por isso fiquei com medo de ser lido pelos pássaros, pois no seu mundo redondo não cabe o meu que é quadrado. Foi daí que comecei a procurar nos monturos, nos caritós e borralhos, palavras que viessem cheias da coragem que nunca tive.

Alguns invernos vieram, em forma de turbilhão, vestiram as plantas de verde, e formigas e caçotes saíram em procissão. Houve açudes arrombados e um foguetório nos céus, de relâmpagos e trovões, parecia que tinha chegado nosso juízo final. Feito um açude eu saía nesses momentos de chuva, ficava repleto de águas, porém carente de margens. De margens é que sou feito, tanto direitas como esquerdas, mas só a terceira margem é que tem me apetecido. Nessa busca pela infância, às vezes eu adoleço, pois persigo algo que tive, depois de tê-lo perdido. Daí ser um tanto difícil acompanhar este José, que vive construindo na ida, o seu caminho da volta. Às vezes pensa ser pássaro, outras vezes se torna árvore, o importante é concertar com espantos o que transporta.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 04/08/15.


 

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