top of page
  • Foto do escritorBatista de Lima

O cheiro da casa

Batista de Lima




Toda casa possui um cheiro especial para quem nela viveu. O olfato é quem mais guarda memórias. Dizem também que o amor é outra lembrança que perdura no nosso ser. Mas aqui quero ficar com a memória olfativa que me transporta a distantes tempos vividos na casa materna. É uma casa em que a mãe está mais presente no olfato que o pai. Afinal, os belos quitutes, confeccionados na simplicidade sertaneja, traziam mais as digitais maternas. Era minha mãe quem mais presente estava sempre ao lado do fogão, que a princípio era a lenha.

Era daquela cozinha que saíam os cheiros que invadiam a casa toda e impregnavam-nos para o resto da vida. Até o fogo do fogão tinha seu cheiro que vinha das achas de marmeleiro seco que ali se consumiam para cozinhamento dos quitutes. O torresmo ao ser preparado não poupava com seu cheiro qualquer compartimento da casa, com três quartos, duas salas e uma cozinha alcançada por corredor meio sinistro. Mas os cheiros não discriminavam setores da casa. É tanto que a refeição começava bem antes de que fôssemos sentar àquela mesa que ainda hoje lá está.

É uma mesa maternal, silenciosa e democrática, pois ali já se sentaram todas as pessoas que tiveram acesso à casa. É o único local a que todos vão sem cerimônia. É o local em que os grandes problemas são resolvidos. É nela em que os cheiros se misturam, democraticamente, e não dá mais para separá-los. A carne fresca transformada em bolinhas temperadas se mistura com o cheiro do feijão verde, com nata, maxixe, e às vezes queijo. Isso em épocas mais fartas. Afinal tempos houve em que os cheiros foram mais raros, mas foram tempos de purificação.

Há outros cheiros que vêm das pessoas. De meu pai o cheiro do cigarro que o circundava. Na minha mãe, o cheiro dos panos, desde os que vestíamos aos com que nos agasalhávamos nas redes. E se chovesse à noite ela trazia um segundo lençol para cada filho se prevenir de algum respingo vencedor do telhado. Era lençol que além do cheiro dela trazia o calor de suas mãos e a ternura protetora. Isso era tão forte que certa feita, ela já numa cadeira de rodas, por conta da doença que a consumia, choveu enquanto eu já maduro a visitava. Era meia noite e ela apareceu na sua cadeira, trazida pela cuidadora, com lençóis quentes de rede em rede.

Naquele instante, com lágrimas nos olhos, lembrei-me dos tempos de sua saúde, com oito filhos para cuidar com tanto desvelo que hoje todos cinquentões, estão vivos e saudáveis. Entre esses cuidados estava a alimentação que não falhava. No inverno, principalmente, a canjica e a pamonha tinham um ritual de feitura. Meu pai retirava do milharal as espigas mais apropriadas. As mais verdosas para a canjica, as mais maduras para as pamonhas. E os dois na cozinha ficavam horas preparando aquele acepipe.

Na Semana Santa havia o bacalhau cujo cheiro ainda sinto a cada Sexta-feira Santa e Sábado de Aleluia. Era a malassada. Bacalhau desfiado, ovos batidos, farinha, e coentro e cebola verdes. Aquele grande omelete era partido em pedaços quadrados e altos para regalo de todos à mesa. Geralmente na Semana Santa já havia o primeiro feijão verde apanhado do lastro de feijão ligeiro ou quarenta dias, como também era chamado. Havia as primeiras macaxeiras e os maxixes vingados na bagaceira do engenho.

Por falar em engenho, era de lá que vinha outro cheiro. O vento trazia, em época de moagem, todo o cheiro do mel das caldeiras e resquícios da fumaça da chaminé. Era tão forte o cheiro que vinha do engenho, perto de casa, que os cheiros tradicionais da cozinha se escondiam para dar passagem, por dois meses de moagem, àquele odor adocicado que entrava pelos nossos narizes e impregnava nossa alma para sempre. Menino de engenho carrega uma fornalha em atividade pelo resto da vida.

Quando era São João e São Pedro, além da fogueira e das chuvinhas e traques, havia o pão-de-arroz. Ele era feito na tarde noite de São João, mas só era consumido na manhã seguinte. Era preciso ficar a noite toda na cuscuseira de barro no fogão ainda morno para que pela manhã estivesse ainda com alguma quentura e suando no pano que o encobria. Era uma delícia com café.

Tanto ele quanto esses ingredientes todos citados da alimentação produziam cheiros que não passam. Afinal, muitas lembranças, que nos atingiram nos outros sentidos, conseguem passar, mas o olfato parece ser o pai de todos os sentidos.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 07.03.2017.


 

4 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page